Quando os nossos olhos
estiverem cegos pelo fundamentalismo, rogo-Te, Senhor, que nos apontes a maior
de todas as Tuas criações: a natureza, onde os seres residem. Peço assim, pois
certo dia, um amigo contestou a interpretação que eu fizera dos textos bíblicos,
dizendo-me um negador das mensagens divinas por não acreditar na teoria dos
anjos decaídos, no inferno, na morte como fim e na impossibilidade das
comunicações espirituais. Disse-lhe, porém, que jamais tentaria impor a
qualquer pessoa os meus conhecimentos; por acima de tudo, acreditar na
liberdade de consciência. Criador de todas as coisas – da matéria e da
antimatéria – que Tu és, meu Pai, sabes bem as idéias que me animam. As
Escrituras Sagradas foram codificadas por homens, em estado imperfeito, dado
que no Universo só existe uma única Perfeição Absoluta, e sobre Ela não preciso
dizer.
Muitos adeptos
religiosos propalam, ao longo dos séculos, que a comunicação entre os mundos
espiritual e terreno é uma transgressão às Tuas Leis. Ignoram os que assim
pensam a natureza social dos seres. A idéia de independência entre as criaturas
é, inteiramente, falsa e nega o código natural da existência. Fizeste, Senhor,
os reinos Animal, Vegetal, Mineral, Funji e Monera; do poder volitivo do Teu raciocínio
surgiram também os astros e as galáxias, e nenhuma dessas criações maravilhosas
escapou do conjunto, em que todos trabalham, doando-se uns aos outros, para
fazer progredir o projeto da vida.
O intercâmbio entre os
planos visível e invisível, apenas, comprova que a Tua caridade não cessa, e os
habitantes das diversas moradas continuam a se ajudar, utilizando-se do diálogo
sem fronteiras. Se houvesse algum erro nisso, meu Senhor, a natureza não nos
brindaria com esses fenômenos inteligentes, cuja causa primeira só pode advir
do Teu amor. Caso esse transporte em luz dos pensamentos fosse proibido, não
terias Tu dado-nos a clarividência, a psicografia, o passe magnético e tantos
outros recursos que consolam e curam as almas sofredoras. Por que a física,
através do deslocamento dos fluídos e a química, por intermédio da afinidade
dos elementos, não fecham portas para atividade mediúnica; pelo contrário,
torna-a possível? Por acaso, foi o mitológico diabo o autor da criação? Foi
dado a ele a engenharia do universo? Obviamente, não. Tu és incomparável, meu
Senhor.
Dando
prosseguimento à inquisição, o nobre amigo disse: – Se podemos ir a Deus, por
que consultar espíritos?
– Ora, respondi-lhe com
duas perguntas: Como ir até o Pai sem passar pelos filhos? Que homem, nesta
terra de dores, fome e guerras, é suficientemente bom e puro para fazer de suas
preces um canal constante com Deus? Sem o auxílio do próximo, nós pouco podemos.
Hoje, mergulhados no senso de superioridade, achamo-nos dignos de decifrar o nosso
Criador e prendê-Lo nos limites de um livro, mas ignoramos que, até os mais
microscópicos dos seres, trabalham para harmonia das coisas. Sem as minúsculas
bactérias, por exemplo, os continentes não teriam sido concebidos, e nós não
teríamos onde morar. Como se vê, o Arquiteto Divino distribui tarefas para que
as diversas inteligências se auxiliem.
Outra prova concreta
dessa interação coletiva está no fato de Deus também atuar – servindo-se da
humanidade – na medicina, pois como bem reza o sábio provérbio: “o médico
trata, e a natureza cura” – e, apenas, ela pode realizar tal prodígio,
devolvendo a saúde ao doente. Até os remédios alopáticos dependem da Grande
Mãe; ao passo que, mesmo sendo manipulados em laboratórios, a energia curadora
presente neles brota dos recursos naturais, o que não exclui do médico a
responsabilidade de perscrutar a natureza para compreendê-la a fundo, e,
instruído acima do superficial, cuidar dos seus semelhantes. Nesse processo
formidável, há a transição do homo sapiens para o homo faber: o homem entende
que além de conhecer, ele pode lapidar a natureza.
O
amigo nada disse, e eu continuei:
– Veja as grandes revelações que mudaram os
rumos da Humanidade. Poderia uma voz se instalar sobre a terra e anunciar todo
o alfabeto divino, todavia, não é assim que acontece. As descobertas surgem com
base no trabalho, na observação do meio ambiente e, pelas vias, do mérito
intelectual e moral. Seguindo essa lógica, Isaac Newton revelou a Lei da
Gravidade; Albert Einstein, a Teoria da Relatividade; Nicolau Copérnico, a
Teoria Heliocêntrica, e os cientistas modernos desvendaram 5% do DNA. A
natureza não dá saltos, e o homem, como parte integrante dela, evolui, gradativamente,
sob a égide da cooperação.
Retornei
às minhas reflexões, em preces:
Quanto à teoria dos
anjos decaídos, sinceramente, não posso crê-la. Como aceitar que um filho Teu, após
descobrir o céu dentro de si mesmo, poderia revoltar-se contra a Tua majestade
e descer a Terra para fundar um império capaz de modificar os Teus planos?
Admitir isto seria recusar-Te a Onipotência e a Onisciência. Se tudo que de Ti
emana traz a linguagem do progresso, de que forma acreditar em seres
infinitamente maus e injustos? Terias, por acaso, Tu, negado-lhes a centelha
divina? Seriam eles capazes de sufocá-la? Certamente, não; pois amas cada filho
em igualdade de condição e permites que a ignorância seja um estado provisório,
e jamais, eterno. Da mesma forma, se eu admitisse o inferno teria que retirar
das Tuas virtudes a Onipresença; porque uma vez que estás em toda parte,
estarias, fatalmente, onde só há sofrimentos, e nisso há um grande contra-senso
quanto à Tua infinita misericórdia.
Segundo o princípio da Conservação
das Massas, “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.
Através da experiência e da observação, Antonie Laurent Lavoisier, considerado
o pai da química moderna, chegou ao conhecimento da citada lei natural. Eis que
me acode uma pergunta, Senhor: se Tu fizeste do homem a mais maravilhosa de
Tuas criações e distinguiu-a das demais espécies ao lhe conferir capacidade
ininterrupta de pensar, por que a morte ceifaria tamanho potencial ou o jogaria
no sono profundo sem lhe promover uma renovação útil? A Tua obra, Pai, me faz
chegar ao fenômeno da reencarnação. Confesso-Te, pois: desacredito a hipótese
de que possa haver uma antítese à vida, um estado paralisante, e o pior, a
não-existência. Quando analiso, percebo que o movimento, impresso na natureza,
é incessante: o sol nasce de um lado e se põe do outro; a lua se transfigura em
novas fases, águas medram como filetes no cume das montanhas, descem pelas
ribanceiras, chegam aos rios e jorram no mar; as baleias atravessam os oceanos;
e as aves cruzam o mapa, deslocando-se entre os pólos...
Diferentemente
do que dizia a retórica religiosa na Idade Média, a Terra não está no centro do
universo, aliás, encontra-se distante do núcleo da Via Láctea; em verdade, aparece
no fim dela, numa composição que tem bilhões de outros planetas, inclusive,
maiores. Em relação ao cosmo, a galáxia mais próxima é a Nebulosa de Andrômeda,
cuja distância da Terra soma bilhões de anos-luz. Será que diante dos fatos,
meu Deus, é verossímil acreditar que Tu só povoaste o nosso orbe, deixando
vazio de inteligência todos os outros, fazendo os Teus filhos transitarem,
tão-somente, entre a tríade: paraíso, terra e inferno? Se és onipresente em
cada partícula do infinito é porque em toda parte a filhos necessitados do Teu
amor. Creio no Deus universal, e não apenas, mundano.
Retornei
a falar com o meu amigo; e depois, ele se foi:
– Os dogmas religiosos
reduzem o significado da palavra ao lhe aplicar uma força unilateral e
ortodoxa, que ignora o contexto cultural, político, social e religioso no qual
as expressões foram proferidas. Para se entender o real sentido de uma palavra,
é preciso buscá-la na língua em que foi pronunciada originalmente; caso a
tradução seja literal, ocorre uma transgressão de significado, e justamente,
dessa maneira, atua o fundamentalismo. Por
trás da palavra dogmática, há interesses que passam a distância das camadas
populares. E os fatos comprovam isso, ou é mentira que determinadas
instituições religiosos tornaram-se verdadeiros estados em virtude do poderio
econômico? Numa natureza que abriga bilhões de vozes, o fundamentalista faz um
recorte da realidade, não admite nada além dela, subtrai da vida a beleza,
perde a sensibilidade, passa pelo caminho sem olhar as diferenças, tenta se impor
pelas ameaças metafísicas, diz ter o monopólio do saber e julga sem cessar.
Do
questionamento ao fundamentalismo
Na situação específica
da Bíblia, o método canônico deveria perceber que, de forma alguma, fazia a
tradução de mensagens particulares, mas sim, do discurso de outrem. O conteúdo
intelectual não pertencia à matéria do psiquismo individualizado, personalista:
os diálogos foram construídos a partir das relações sociais. A comunicação,
oral e telepática, é dona de signos dialéticos vivos e mutáveis. A análise
sincrônica da língua, imersa num sistema abstrato de interpretação, cria
mensagens inertes – paralisadas no tempo – que resumem a palavra ideológica às
definições formalistas, presas aos limites do dicionário. O pretenso
objetivismo busca, arbitrariamente, a unicidade do discurso, posto sob o
espectro da dominação e de lemas salvacionistas.
O simples fato dos
evangelhos primitivos terem sofrido a inserção de réplicas sutis e grotescas já
é o suficiente para se admitir mudanças na significação dos enunciados. Deve-se
levar em conta que os textos apostólicos não trazem, apenas, o discurso de
Jesus em citação direta. Por motivos espaço-temporal, os discípulos não
dispunham do conteúdo completo das preleções, mesmo assim, foram capazes de
codificar o tratado humanista, porque conservaram a essência do discurso, e a
maneira escolhida para relatá-lo não sacrificou o propósito da mensagem. O
problema é que não há aproximação do tradutor em relação à autoria original; ao
passo que o último conheceu os personagens da história, os primeiros se mantinham
encastelados, alheios ao cenário social. Nesse caso, há uma diferença assombrosa
entre o “discurso vivido” e o traduzido. Preso a rigidez dogmática, o estilo
canônico faz de seu mundo o universo e esquece que na tradução vale o esforço
para conservar o valor semântico da palavra – que vai de um idioma a outro para
se enraizar no corpo social.
A língua é energia
móvel, transformadora e ininterrupta. Limitada, serve de instrumento para
atingir fins particulares. No organismo vivo da sociedade, modifica-se conforme
o progresso, desmitifica a ilusão e passa a refletir os mistérios da verdade. A
palavra assertiva é típica dos contextos científicos. Nos campos religioso e
filosófico, não se pode dizer “é assim e pronto, quem não me acompanha está
perdido”. Se a verdade estivesse pronta e alguém dela tivesse a fórmula, diriam
que o homem conhece a natureza de A a Z; o que hoje, é impossível aceitar. A
verdade se revela com a evolução do conhecimento.
Se essas instituições
acreditam serem donas da verdade, por que atuam de forma punitiva, invasiva,
excludente e se incomodam tanto com o avanço da inteligência humana? Pode o ser
pensante acreditar que os enigmas divinos se encontram dentro de templos de
pedra, e não, na natureza que é a maior entre todas as obras da criação? A
História comprova que a Igreja Católica esteve sempre entrelaçada ao poder
político, desde a época do Império Romano, que, entre tantas atrocidades,
escravizou outros povos, feriu o conhecimento ao incinerar a colossal
Biblioteca de Alexandria e utilizou táticas de guerra para atacar, na Grécia, o
Pathernon, uma das construções arquitetônicas mais suntuosas do período
Helenístico, cuja marca carrega o início da civilização.
Não seria o
fundamentalismo – que maquia a realidade, criando labirintos na consciência
coletiva para esconder dos homens o caminho da fraternidade universal – a
verdadeira face diabólica? Absolutamente nada, derramou mais sangue sobre a
terra, causou dores, intolerância, manipulação política e desejo de vingança do
que os conflitos religiosos, pretensamente, amparados por letras divinas. É
plausível, caros irmãos, imaginar que o reino de Deus vá se estabelecer em meio
a genocídios, torturas e interesses financeiros? O diabo, propriamente dito, é a ilusão, a
violência, a ignorância; em suma, a irrealidade do ser, que não reconhece o seu
potencial divino.
Grandes
expressões humanistas
Jesus foi prova viva do
não-fundamentalismo. Embora, enorme conhecedor das leis judaicas, Ele não aceitou,
à época, o argumento dos sacerdotes. Utilizou-se, no fundo, das codificações
litúrgicas para escapar das perguntas capciosas que almejavam derrubá-Lo. Ao
passo que o totalitarismo tentava abraçar, como se fosse possível, as coisas de
Deus, o Cristo visitava lugares, onde o poder instituído não queria estar: ao
lado de paralíticos, cegos, surdos, mendigos, prostitutas, adúlteras... O que
Lhe motivou a consolar os supostos amaldiçoados, segundo o olhar daqueles que
amam o privilégio? Narcisismo? Ego? Aplausos? Não, nada disso. Em uma palavra:
caridade.
No oriente, Mahatma
Gandhi entendeu perfeitamente a missão humana de disseminar amor e paz entre os
povos e nunca se curvou à inércia e ao pragmatismo religioso. Nenhum líder
fundamentalista, capaz de renegar à natureza para se afundar em dogmas,
conseguiu a proeza humanista do mártir indiano que se transfigurou numa estrela
de paz e libertou 350 milhões de pessoas da influência nefasta do Exército
Britânico. O contingente populacional equivalia a 20% dos habitantes do globo.
Diante de tanto respeito à vida, a força bruta viu-se impotente, acima de tudo
por agredir, e, do outro lado, encontrar resistência pacífica. Na prática, as milionárias
instituições religiosas não conseguiram deixar maior mensagem de fé ao mundo do
que Mahatma Gandhi. Longe dos templos, ele amou incondicionalmente. Sem
escrever cartilhas, enxergou que “a verdadeira educação consiste em pôr a
descoberto ou fazer atualizar o melhor de uma pessoa”. E para isso: “Que livro
melhor do que o livro da Humanidade?” Alguém se atreveria a demonizá-lo, a
submeter tal consciência a textos alegóricos e, por fim, negar-lhe a grandeza
espiritual? Creio que sim, pois desta forma, agimos, dando valor às aparências,
sem perceber que o céu está dentro de nós.
Do
amor
Creio que toda religião
seja uma porta aberta para amor. E o amor não pode ser fundamentalista, porque
ele é fluido, invisível, incorpóreo e ninguém pode senti-lo se não merecer. Através
do amor, não se faz dogmas; essa energia fraterna é livre, não violenta
consciências e dá ao homem o discernimento para compreender: tudo que leva a
segregação é contrário à natureza. Filhos de uma Grande Mãe, somos todos
irmãos, independentemente de cor, etnia ou credos. Não seria muito melhor substituirmos
o que nos deixa intolerantes, irados e desdenhosos quanto ao próximo, que
julgamos serem indivíduos de um patamar inferior ao nosso? A natureza acolhe a
todos; a fome, a miséria e a exploração foram criadas pela tirania humana. O
que o fundamentalismo prega, o corpo condena. Se o amor e a harmonia com a
natureza são sinais de saúde, a discriminação é uma doença, que agride o dono
dela. Quem execra, execra dentro de si mesmo.
Ao
querido amigo que me suscitou esta reflexão, os meus agradecimentos sinceros e
a esperança íntima:
Chegará o momento em
que as algemas intelectuais serão rompidas e a milenar sabedoria de algumas
civilizações visitará vizinhos continentais e irmãos do lado de cá do mundo
para modificar corações fundamentalistas, à luz da ciência e da filosofia
espiritual. Oxalá, surjam novos “Mahatmas” que consigam ouvir ensinamentos do
Alcorão Islâmico e dos Vedas Hindus com o mesmo respeito, cuidando de cortar os
galhos secos da árvore para lhe dar força e, assim, permitir que os bons frutos
possam prosperar. No mais, entendam: Cristo não é exclusividade de religião a,
b ou c. Ele vibra em todas desde que se haja amor. A Sua enorme morada é o
tempo, e não, os templos. Ninguém pode reclamar o domínio de uma força
universal.
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