Lutando contra a miséria de
minha alma, abastada de melancolia, procurei um recanto, onde, sossegado,
pudesse orar. Faltava-me paz durante o dia, e sono, à noite. O corpo era pura inquietação,
em cada parte parecia haver uma cicatriz. Falava sozinho, escutava vozes e tudo
me assustava. As certezas de antes se diluíam. Nada me convencia do contrário:
a dor triunfara sobre mim.
Choroso, ajoelhei-me no chão de cimento do quintal. Queria o tempo. Falar diretamente com Deus. A
fé, apesar do sofrimento, resistia como chama exposta ao vento. Em mãos, trazia
vela e caixa de fósforo. O pavio brilhou, mas num estalar de
dedos, o fogo se extinguiu. Não ventava. Insisti. Novamente,
apagou-se. Outras três tentativas..., e o mesmo fim - sem luz. Como se não conseguisse rezar sem o ritual, lágrimas, ainda mais tristes,
brotaram dando o tom do momento.
Um velhinho, mestiço e formoso, surgiu e ergueu-me a fronte.
Presenteei-o com um olhar de esperança, devido à vibração que se espalhara pelo ar. – Filho,
disse ele. – Fui eu quem assoprou esse fogo. Você já sofre há muito tempo. Se
dependesse da vela que acendi, já estaria curado.
Sem compreendê-lo, fixei-me
em sua imagem.
– A ponte que liga os homens
aos mensageiros de Deus é o amor, a língua que os anjos mais entendem. Tenho visto muita vela
sendo acesa com a chama do coração apagada. Não adianta, ele ensinou
– Como assim?,perguntei,
complementando: – Me disseram que isso é uma firmeza, um ponto de luz.
– Secundário, meu filho
amado, a vitrine que exibe o supérfluo e esconde o principal. A maior firmeza do mundo
está no coração e
na força positiva dos pensamentos. Alimente essa verdade dentro de você e
jamais lhe faltará luz.
– O senhor, por acaso, quer mudar o que a prática consagrou?,indaguei-lhe.
– Não. De maneira
alguma. Apenas, quero lhe ensinar a leitura da vida. As letras guardadas,
misteriosas. O caminho do real aprendizado é longo.
E todo seu, filosofou o velho sábio.
– Por que usa
metáforas?,contestei a transmissão das idéias. – Fale-me às claras.
Ele me atendeu.
– Não compre cartilhas prontas, se você é
capaz de escrever a sua. Use-as, na verdade, para questioná-las, estendendo
sobre as mesmas a lupa da razão. Os homens apreciam
as palavras ensaiadas, os gestos repetidos e acham que sabem muito. Olham para
vela e não vêem o irmão que sofre ao lado. Lembram-se das
oferendas, e dão de
ombros às privações alheias. Tentam comprar os santos com agrados, no toma lá
da cá, como se as relações espirituais tivessem o mesmo contexto vil das terrenas.
A lâmpada se acendeu e a
cada frase o linguajar da doce figura me espantava;
confesso, jamais imaginei ser aluno de tão bela oratória.
– A beleza dos rituais é
fantástica. Contagia aqueles que participam, mas tem faltado a caridade -
essência que atrai os benfeitores espirituais. A religião sem caridade é como a terra arada para o plantio que não recebe a semente. Há tudo para dar
certo, todavia, sem a magia da vida, não frutifica. Pois a caridade é a magia
da vida. Por ela, Jesus viveu, reviveu e vive.
Ao ouvi-lo falar do Cristo,
emocionei-me. Agora, sem lágrimas. Emoção interna que aquece o coração. O velho percebeu e continuou...
– Uso a vela como
referência, porque exemplifica, claramente, o que acontece. O homem mal-intencionado reveste as ocasiões
religiosas com rituais que enganam os olhos. Quando ele ajoelha e acende a
vela, todos pensam que pedem o bem, nem sempre é assim. Diz rezar aos
Céus; quando, na realidade, vibra e pede à energia terra a terra.
– Isso é hipócrita demais,
exaltei-me.
– Não julgue, filho. Concentre-se em orar e
vigiar. Peça a Deus misericórdia e não compartilhe ações que a sua
consciência condena, aconselhou.
Assaltou-me a mente uma
pergunta: – Há nesses atos alguma relação com o dinheiro?
– Toda!,asseverou sem
titubear. – A cada dia, os rituais ficam mais caros e luxuosos, tiram das
pessoas aquilo que elas não têm, frustram os que pouco podem
contribuir e exaltam aqueles que pagam por tudo. A espiritualidade tem um propósito fundamentalmente humanista,
de união fraternal,
sem interesses materiais. O
dinheiro,
a seu turno, cria segregações, pois, em regra, atende interesses pessoais, e não,
coletivos.
– Com o senhor falando desta maneira, vejo uma corrida
pela posse do ouro, constatei.
– Exatamente. Os rituais
desprovidos de amor e caridade são elementos burocráticos com a
função de preencherem o tempo, de justificarem uma reunião.
– Se os rituais forem retirados da Umbanda,
haverá uma equiparação com o Espiritismo?
– O que distingue a
identidade de ambas não é
a presença de rituais em uma e a ausência em outra. A diferença está na
personalidade dos espíritos que se manifestam e nos trabalhos que eles cumprem
de acordo com suas missões. Nas bandas, os guias estarão presentes enquanto o objetivo da incorporação for o socorro a quem sofre, mas irão se afastar caso o objetivo das sessões escape à caridade
e atenda ao ego. Com isso, eu afirmo que um terreiro pode ser considerado verdadeiramente
de Umbanda, quando em
suas giras, Ogum, Xangô, Iemanjá, Oxum, Iansã, Nanã, pretos-velhos, caboclos e
crianças forem trabalhar. No dia em que tiverem, apenas, os rituais e faltar o santo, pode-se dizer que a Umbanda não acontece. E o mesmo vale para Quimbanda, com seus
Exus e Pombagiras.
Percebi que o velho não pedia o fim dos
rituais; pelo contrário, desejava a volta do axé, da energia positiva, da
influência salutar, que vêm de Aruanda. Quando o som dos tambores, a luz das velas, o cheiro do defumador e as saudações se
encontram, no terreiro, com a vibração dos Orixás, dentro da Umbanda, nasce uma
corrente poderosa. É o despertar da magia que cura, corta
demandas e ensina; em resumo, o que nos move.
Entendida essa parte,
busquei novos esclarecimentos.
– O que o senhor acha que deveria mudar nos
terreiros?
– O importante é trabalhar comportamento e
atitude. O primeiro compreende a postura moral, o segunda, a ação - as virtudes colocadas em prática. As
pessoas precisam se reformar. Não adianta passar horas em dado local e
de lá sair com os mesmos vícios; às vezes, até corrompidos por outros. O Orixá é a sua cabeça, a procura da sua
verdade, a descoberta da sua missão, o autoconhecimento; e isso é
intransferível. Se você acha que cumpre bem as chamadas “obrigações
espirituais" só porque segue a risca os rituais, afasta-se da sua
inteligência, aprisiona a luz dos seus mentores e não consegue canalizá-la. Quando, meu filho,
alguém lhe perguntou sobre a sua missão?,quando procuraram
saber o seu nível de autoconhecimento?
– Nunca!,disse.
– Muitos líderes espirituais (pais e mães de santo)
tratam a mediunidade como se fosse algo padronizado, sem levar em conta a
individualidade. Identificar um médium, como muitas casas fazem, não é tarefa das mais difíceis; todos detêm o dom espiritual em graus diferentes; o x da questão está no trabalho a ser desenvolvido;
cada pessoa reage aos fluídos e a atividade mental externa dos espíritos à sua
maneira, e esses fatores necessitam de estudos com vista no equilíbrio das
forças médium/espírito. Levando-se em conta o estado
de consciência do sujeito, a terapia que lhe serve pode não resolver o problema alheio. Existem pessoas que encaram o fenômeno mediúnico com naturalidade,
outros sofrem, por exemplo, por serem demasiadamente impressionáveis,
agitam-se, passam mal por períodos longos. Faz-se mister o autoconhecimento e a busca da missão designada e aceita. Nem todos darão consultas
e farão transportes
(puxadas), porque, talvez, não tenham essa missão e nem sejam assistidos pelos bons
espíritos com essa finalidade. A caridade é um objetivo, que se desdobra em possibilidades múltiplas, e o médium precisa se conhecer para seguir um caminho
particular. Alegar que as "entidades querem trabalhar" é vazio
demais; a incorporação não se justifica a qualquer custo, pois
mal direcionada causa frustrações, descrença e graves doenças.
Após uma breve pausa, voltou a falar...
– O mais importante deixam passar, jogam para último plano; por isso,
há tanta gente perdida, que não se auto-reconhece. Consideram-se
espiritualizadas ao decorarem o manual
dos rituais; porém, eu lhe digo: o ritual exagerado serve
para convencer os incrédulos, os que precisam "ver para crer", a
exemplo de Tomé. Além dessa categoria de homens de pouca fé, existem os leigos,
cujo conhecimento espiritual não passa do be-a-bá; logo, as encenações
ritualísticas tornam-se um ponto
de apoio, onde os olhos vêem cegamente... Se é que você me entende...
– Mais ou menos...
– Atenção, filho. O primordial é a comunicação mediúnica,
que diferencia a formação do médium da psicologia elevada do
espírito; quando o consulente ouve particularidades de
sua vida, cujo médium seria incapaz de saber, conclui-se a fidelidade da
incorporação. Através do diálogo, os
espíritos trazem a palavra consoladora e fincam sobre rocha firme a bandeira
divina da Umbanda.
Infelizmente, o nível dessas consultas tem murchado feito flor - que gosta de
luz - exposta à escuridão. Aliás, creio
ser esta figura perfeita para o entendimento:
a luz incomoda quem se acostumou às sombras; sem iluminação, o médium
decai, perde as faculdades, por mal usá-las. Se a moral praticada no terreiro é
estranha, os
guias se afastam; a missão deles está em outro patamar. Então, restam as exibições mediúnicas e o excesso de trabalhos aos quais me referi.
Vasculhando a memória, comentei: – Queremos saber das
cores, das saudações, dos gestos, dos nomes, das guias e nos contentamos,
crendo ser um grande aprendizado.
O velho, feliz pela minha
descoberta, mergulhou na questão: – Falo de
comportamento, porque se não o avaliamos
nos mantemos estáticos; aceitamos o erro
como algo definitivamente nosso, impassível de mudança. Logo, as atitudes serão contaminadas;
quem se comporta mal tem grandes chances de agir da mesma forma. Na Umbanda, o problema aumenta: o médium, em exercício, é um canal aberto. Se o campo
psíquico estiver voltado para comportamentos, como medo, culpa e não for
trabalhado para criar autodefesas, as energias mais densas serão atraídas.
Então, eu lhe pergunto: como vencer os problemas decorrentes
- depressão, pânico, auto-estima baixa-, se o conhecimento está fechado em rituais?
Por isso, apaguei a sua vela.
– Complexo!,interpretei.
– Nem tanto. O corpo
precisa se exercitar para viver saudavelmente, caso contrário, adoece. O mesmo se dá com o espírito, dono do caráter, dos
valores, da moral. Ninguém nasce perfeito na caridade e no amor, os maiores
legados do Cristo; de tal maneira, devemos praticá-los; somente a experiência
dá a dimensão do quanto é importante fazer o bem e fortalece a nossa fé.
– Onde devo procurar os exemplos que o senhor tanto fala?
– Vá aos Evangelhos escritos pelos apóstolos de Jesus.
Leia os ensinamentos codificados por Mateus, Marcus, Lucas e João... Encontrará
maravilhas, que pertencem a toda humanidade.
Fechei
os olhos, refleti em segundos e, como num flash, fez-se um grande
ponto de interrogação na minha cabeça. Não resisti
e externei a dúvida.
– Da
forma que o senhor fala, parece que dentro da Umbanda não há caminhos. Consultar os Evangelhos
significa ir à Bíblia que sustenta os dogmas católicos e protestantes.
O velho
sorriu, e aquela voz doce ecoou novamente.
–
Meu filho!,enfatizou a expressão que nos aproximava. – Jesus pediu que
os seus discípulos fossem aos continentes para instruir os filhos de Deus; pois sob essa
constatação, não há dúvidas, os evangelhos são universais em qualquer época. No mais, você tem
ciência da reencarnação, da
eternidade do espírito, da Lei do Retorno, da pluralidade dos mundos e não acredita no Diabo, certo?
–
Sim, afirmei sem saber onde ele queria chegar.
–
Veja e analise: as convicções que lhe animam são outras, diferentes das que fazem parte
da vida dos irmãos católicos e protestantes. O Evangelho
terá outro significado quando entrar em contato com a sua condição espiritual. O ser
consciente não absorve idéias, conforme a letra fria,
porque adquire a capacidade de interpretá-las. Uma vez feito isso, terá sob a
guarda da razão novos padrões de justiça, amor e
caridade. Perceba que não lhe peço utopias
e nem o cumprimento de tarefas heróicas.
Intimamente, desejo a maturidade psicológica do médium – algo que deveria ser o grande objetivo dos terreiros de Umbanda.
Respirei profundamente e
percebi que as minhas mãos não estavam geladas e o meu coração batia em paz, estado emocional,
impensado há algum tempo. Antes dessa conversa, o assunto
me agoniava. Aproveitei a calmaria para uma nova observação, sempre questionadora.
–
Mas a Bíblia não trata,
ao menos explicitamente, da reencarnação; tanto é que
os seus maiores adeptos desacreditam o fenômeno,
comentei para entender melhor.
– Se
todas as leis fossem reveladas há milênios em um único livro, nada mais haveria de ser descoberto, e a caminhada
humana estaria concluída, o que
definitivamente não se confirma: o progresso é notável. Deus nos
deu o livre-arbítrio para construirmos. Peço que leia os Evangelhos, e não, a Bíblia inteira; justamente, porque nos
textos dos apóstolos se refletem os trabalhos de comportamento e atitude que
lhe falei.
– E
como isso se realizaria
na Umbanda?
– Um terreiro pode ser o grande
palco de realizações dessas tarefas humanistas. Os espíritos que se manifestam
na religião trazem uma linguagem simples para
serem compreendidos por todos. Imagine o perfeito
entendimento dos Evangelhos chegando aos obsediados e doentes de toda ordem...,
entusiasmou-se o velho. – A Umbanda é capaz de fazer isso pelas famílias
que sofrem e lhes devolver o lar.
Será o tempo em que as velas, o cenário das cores, as belas imagens e
certos adornos serão preparados por médiuns
íntegros, equilibrados e com a famosa “cabeça firme” para ouvirem novas
revelações que, certamente, hão de vir.
De
repente, ouvi um barulho dentro de casa, e o velho pediu que eu fosse ver o que era. Nada demais, o vento havia batido a porta. Quando
voltei ao quintal, estava escrito no chão - "Você ainda vai me ouvir
muitas vezes".
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