Solitário, em meio à
multidão, um grande amigo me convidou para passearmos. A noite estava órfão de
beleza, como eu jamais havia visto. Os anjos pareciam ocultar os seus olhos
estelares, e o céu, sem adornos, não chamava atenção de ninguém. Caminhando pelas
ruas, pensei em fazer versos; queria alegrar a triste alma que me acompanhava.
Não consegui. Intimamente, só pensava na ausência daquelas lágrimas azuis, que
se põe no firmamento. Ainda em silêncio, vimos algumas crianças malvestidas,
remexendo o lixo. Perplexo, comentei com o meu amigo: – Procuram comida. Ele
suspendeu o semblante, outrora cabisbaixo, e caminhou em direção aos
pequeninos. – Onde vai?, perguntei, tentando impedi-lo, mas nada pude fazer. O movimento
possível me permitiu ver em seus olhos o
sentimento terno pelas misérias alheias.
Havia ali perto, um
pequeno bar. Entregou-me uma nota e pediu que eu fosse comprar comida, para
dividir entre todos. Considerei arriscado ficar naquele lugar escuro, cheio de
becos e de sons estranhos. De vez em quando, ouvia-se uma gargalhada de gente
ébria. Compadecido pela atitude do meu amigo, esqueci as objeções e fiz o que
ele me pediu. Ao voltar, trazia, em sacolas, bebidas, sanduíches e doces. Foi lindo ver aquelas crianças, sentadas no
meio-fio, ouvindo um dedinho de prosa. Os estômagos vazios suportavam a fome,
porque o coração estava se enchendo de sonhos. O cheiro de comida, porém, mexeu
com todos, e eu, prontamente, comecei a servi-los.
Era bonito e, ao mesmo
tempo, aflitivo ver a forma com as crianças comiam. Certamente, gozavam de
enorme felicidade, mas o apetite, de tão enganado, devorava o lanche. Parecia
ter medo de estar vivendo uma ilusão. As mãos franzinas quase sumiam a cada
bocada, e o molho que escorria pelos dedos levava lambidas. Cada sabor tinha o
seu significado. Vi crianças comendo iguais a lobos famintos.
Após o lanche, o meu
amigo, novamente, surpreendeu-me. A minha visão limitada da vida já considerara
aquele gesto algo sublime e digno de aplausos. No entanto, o dono da atitude
não pensava assim. Naquele momento, para ele, nada poderia ser mais importante
do que as crianças. Elas, sim, eram as artistas da noite. Convencido disso, o nobre
camarada sentou-se no chão e perguntou se elas queriam ouvir uma estória.
– Queremos!, disseram
todas.
– Por favor, não vá
embora, temeram algumas.
Preocupado com a hora,
disse-lhes que eu não poderia ficar. De repente, uma mãozinha quente, tocou-me
as costas e pediu: – Fica, tio. Não pude recusar. A palavra veio com tamanha
energia que me arrebatou e convenceu. Esqueci os compromissos, desliguei o
celular e perguntei ao meu amigo:
– Que estória contará a essas crianças? Também
quero ouvi-la.
– Falarei de
humanidade.
– Como? Isso é muito
complexo, envolve política, guerras, impérios, filosofias...
– Eu disse humanidade, enquanto sentimento, e não a reunião de fatos sobre o que fez o homem sobre a
terra desde os primórdios.
Calei-me para
escutá-lo. A maneira como negara a minha afirmação fora gentil e abrira um poço
de curiosidade dentro de mim. Enquanto, eu imaginava grandes teorias, ele vinha
com uma simplicidade autêntica, tão peculiar à sua índole.
– Meus queridos, posso
começar?, perguntou às crianças.
Em uníssono, todas
responderam: – Pode!
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"Vinde a mim as criancinhas" |
Por instantes, veio à
cabeça a imagem dos pequeninos caminhando em direção ao Mestre amado. De certo,
o meu amigo lembrou-se da santa atitude que tanta vezes exaltou: – Jesus cuidou
dos mais frágeis! Dizia isso com intensidade, claramente, emocionado, alterando
o estado de consciência pela elevação dos pensamentos.
Um menino resolveu perguntar o nome do meu
amigo. Sem esconder, ele respondeu: – João. Assim, todos se apresentaram. E na
voz do contador de estórias, Pedro virou Pedrinho; Maria, Mariazinha; Luiz,
Luizinho... Sempre no diminutivo para marcar o tom de carinho e proximidade.
As palavras começaram a
surgir:
– De todas as belezas que existem no mundo, a maior é a
Humanidade; nenhuma criatura de Deus pode fazer tanto quanto os homens.
Eu interrompi: – Por que você diz
isso, se há tanta miséria e fome? Veja essas crianças, ninguém olha por elas! O
homem é egoísta.
– Não tiro a sua razão
de me questionar. Os adultos perdem a esperança porque acreditam pouco no
próximo; experimentam, cheios de orgulho, a utopia da independência, a vontade
de estar acima de todos e viver distribuindo ordens. Isso é impossível. Não
importa se o comportamento autoritarista vem do presidente da república ou do
chefe de família. Em cada caso, todas as vezes que o homem age desta forma, há
sofrimento e dor. Os maiores exemplos de felicidade nascem quando as pessoas entendem
que precisam uma das outras.
Negrinho como o manto
da noite, Rafinha prestava atenção. Tinha os olhos fixos no prosador e um frio
que o fazia se encolher. A falta de agasalho, porém, não o impediu de levantar
a voz: – Meu pai é igual às pessoas que o senhor está falando. Depois que batia
nos meus irmãos e na minha mãe, ele sempre dizia: “quem manda nessa casa sou
eu. Vocês bebem, comem e dormem, graças ao meu dinheiro”. Contando, o menino
chorou.
Vendo-me abraçá-lo
durante o choro sincero, João trouxe a palavra consoladora: – Rafinha, fique à
vontade. Você é nosso amigo. Saiba que o seu choro é a expressão mais bonita
dos meus últimos tempos. Tenho visto miséria acompanhada de violência: pessoas
que sofrem revoltadas com a vida. Mas, você chora as lágrimas de uma alma
pacífica. Vejo, que apesar de tudo, ainda ama o seu pai.
Rafinha abraçou o amigo
ao lado e chorou um pouco mais. João percebeu o momento propício para falar de
humanidade. Tinha, à frente, crianças abandonadas, fruto de uma sociedade em
desequilíbrio, que dá valor as coisas e desprestigia a dádiva da vida. Se existisse
amor real, entre os homens que governam e são governados, aquelas frágeis
criaturas não estariam ali, jogadas numa sarjeta, sem ter o que comer.
Como se pudesse ler os
pensamentos de João, eu, quase, voltei a interpelá-lo para me desfazer da humanidade,
da qual a minha vida faz parte. Não consegui, pois ele voltou a falar,
fraternamente, com um sentimento capaz de desfazer a minha carranca. Chegara a
vez de meu espírito chorar; intimamente, enterneci-me.
– Fico alegre por
vê-los, meus queridos, tão amigos. Cheguei aqui e, em momento algum, vi brigas,
ofensas e orgulho; pelo contrário, vejo amizade, amor e compreensão. Quando o
Rafinha chorou, foi, prontamente, consolado. Isso é humanidade: a reunião de grandes
virtudes, que os brandos e pacíficos sabem externar. Por vivenciar isto, eu
digo: acredito nos homens, porque sei que eles nascem crianças e, um dia,
voltarão a ser crianças, por descobri-las escondidas dentro de seus corações.