sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O livre-arbítrio também é dono da gira

   Na última semana, recebi, em minha casa, um amigo muito querido que, há tempos, eu não via. Já no portão, assustei-me ao abraçá-lo; vi um moço enfraquecido, com a voz embargada e os olhos avermelhados. Quanto desânimo e pesar carregava aquela jovem alma!  Intimamente, recordei as suas queixas antigas, cuja memória conservava ainda com certo viço: – Não sei mais o que fazer, dizia ele, em lamento, sob o fardo do semblante cabisbaixo.

  Nessas horas, qualquer palavra não serve; a mente confusa está cansada de tanto ouvir e nada de proveitoso assimilar. Sutil, iniciei a conversa com a mais comum das perguntas: – Como vão as coisas? Obviamente, não iam nada bem, mas eu não podia contar o espanto em vê-lo tão abatido. Temi um bloqueio; ou até mesmo, uma negativa do tipo: – Engano seu, estou ótimo. Dai a prudência. Muitas pessoas preferem sofrer caladas, e alguns agentes invisíveis dessa postura são conhecidos da psicologia mundana; entre eles, está o medo, enorme parasita da alma, que se infiltra nos conflitos humanos a fim de levar doenças ao organismo.

  Da simples pergunta, surgiu o desabafo inesperado.
 – Passei mal ontem, a cabeça dói, as costas também e no peito parece que levo os pecados do mundo; quase não me agüento em pé, completou.

  Quis saber se ele havia consultado o médico. Afirmou que sim. Os exames não apontavam enfermidade alguma. Em face ao problema, ocorreu-me um estalo imediato – o sofrimento espiritual persistia por não encontrar o devido tratamento.

 Dentre as repetidas frases dele, esta foi emblemática: – Não faço nada de errado. Cumpro religiosamente as minhas obrigações, dizia, sem observar a ineficiência de suas práticas. Optei pelo silêncio para somente ouvi-lo. De vez em quando, a cada intervalo de idéias, pedia que ele buscasse forças através das preces e confiasse em Deus. Não me escutava; era pura desolação.

  Confesso que me tomou o ímpeto de questionar o terreiro que ele freqüentava. “Está há tempos no mesmo lugar, e os problemas só se agravavam. Ninguém lhe propunha um estudo profundo do caso para ajudá-lo realmente”, pensava eu, sem confiança, para externar a constatação. Conversamos por mais alguns minutos; nos despedimos com a promessa do reencontro.

  Sozinho, sentei no chão da varanda e me fiz a seguinte indagação em bom som: – Que conselho foi aquele: “O melhor que você tem a fazer é não incorporar”? Senti um alívio por não ter passado de um pensamento; já pensou se digo alguma coisa? Iria me sentir culpado. Absurdo! Vou tratar de esquecer. Quando levantei, ainda aturdido, reconheci uma cândida voz: – Aquieta-se, meu filho!

  Para minha surpresa, era o mesmo velho de outrora. – Não disse que voltaria? Pois, estou aqui. Admirável a força transmitida; luz suave, mansa, de qualidades superiores em relação à primeira vez em que nos falamos. Recebi um sopro de alegria no coração, e os meus lábios estamparam o mais novo sorriso. Coisa boa de sentir, farol que se reflete abençoando o lugar.

  – Foi o senhor quem me inspirou a idéia que eu combatia há instantes?

 – Não!, disse ele, enfatizando: – Agora, o sopro que lhe toca a mente vem de outras bandas.

  Busquei entendimento, como alguém que tenta decifrar às letras para dar significado ao mistério. – O que o senhor quer dizer com outras bandas?

­– Veja, apontou-me.

 Ganhava forma à imagem de um caboclo, cujos passos vinham em minha direção.

  O velho tomou à frente. – Este é um grande amigo, nos conhecemos há muitas luas e, hoje, trabalhos juntos neste universo de Oxalá.

 Extasiado estive e, assim fiquei, até retomar o prumo. Em termos de características, os meus olhos gravaram, apenas, a pele vermelha, que brilhava sob os raios do sol. Talvez, fosse o bastante. A imagem reveladora, sem maiores detalhes.

 – Filho, despertou-me o velho, – esse caboclo que suncê vê é o verdadeiro dono daquelas palavras: “O melhor que você tem a fazer é não incorporar”. Grifa-se nesta revelação que o velho começava a se utilizar de uma linguagem antiga.

  Feita a apresentação, o caboclo me deu o seu depoimento: – Menino, não tenha pena de ninguém, substitua os sentimentos menores que lhe sensibilizam ao extremo. Cultive a compaixão e se proteja dando propósitos elevados à ajuda que oferece. Saiba, primeiramente, por onde começar. A caridade exige inteligência emocional. A pena é a emoção passiva, inconsciente, que lhe faz absorver o drama alheio; enquanto, a compaixão lhe leva a agir em busca de soluções.

  – O senhor diz assim, caboclo, porque percebeu o quanto fiquei abalado com a situação do meu amigo?

  – Exatamente, e notei também que você não sabia como orientá-lo; por isso, enviei-lhe uma única frase capaz suscitar um diálogo entre nós dois.
 
  Comecei a esfregar as mãos por senti-las muito frias. O velho notou e repetiu o conselho: – Aquieta-se. Em seguida, tocou o meu peito com novos dizeres. – Busque os Orixás no lugar mais próximo: o recanto imaculado, onde você é absolutamente singular.

  O meu coração entendeu o recado e, como recebesse um carinho, alegrou-se profundamente. É impressionante a força que os diferentes estados de espírito têm sobre o corpo. As palavras do velho chegaram até mim feito brisa, leve e suave. Imediatamente, modificou o meu humor. São muitos os dias em que procuramos transformações meteóricas nos lugares longínquos. Sem perceber, ignoramos o caminho mais curto: o da auto-descoberta.

  O velho continuou: – Nesta terra, existe a ignorância de si mesmo. Os homens desejam mudar tudo, e se esquecem do compromisso maior que assumiram: cuidar de suas vidas. Filho, dê diretriz aos seus pensamentos, identifique as causas do mal-estar que lhe ronda e vença-as. Depois, pergunta-se mil vezes por que venceu e terá como recompensa os frutos da sabedoria íntima, que permitem ao ser consciente se reconhecer nas obras do Criador. Mais calmo, agradeci à celestial sabedoria e pude, com maior claridade, ouvir o caboclo.

  – O seu amigo precisa de um tempo, explicou o caboclo. – Ele já não consegue mais distinguir a realidade da ilusão. Falta-lhe lucidez. A mente mal orientada repassa aos espíritos a missão de produzir todas as respostas necessárias à evolução do médium. Tal percepção representa uma recusa perigosa do livre-arbítrio. Os guias atuam em auxilio ao homem, mas não podem influir em suas vidas a ponto de tomar decisões, estritamente, particulares.

  – Por que somos tão vulneráveis a esse ponto?, indaguei.

  – Menino, o homem que duvida dele mesmo tem marcado na alma a dúvida sobre a onipotência de Deus; acreditar em si é confiar em Deus. A separação entre o Pai e os filhos quem faz somos nós. Quando estiver perdido, não veja a cura nos outros; pois a mesma está em você. Certa vez, um jovem me questionou qual seria o melhor lugar para encontrar a Deus. Respondi-lhe com um pedido: não fuja do seu lar, nem abandone parentes e amigos; o melhor lugar é aquele onde o problema se instala.

  “Impressionante!”, exclamei em segredo. O caboclo mergulhava no sofrimento do meu amigo, através de nosso diálogo. Cada ensinamento encontrava os problemas que tanto me causavam preocupação. Era verdadeiro: Tiago saia de casa, vivia ajoelhado aos pés das entidades e jurava praticar uma boa Umbanda porque não cometia pecados capitais; ledo engano. Suas virtudes eram deveras grandes, inegáveis até; porém, a acomodação alojava-se em suas práticas. Pretendia conhecer os Orixás, antes de investigar-se. E o pior: acreditava em tudo o que lhe diziam.

  A partir dai, começamos o anunciado diálogo.

  – Pode alguém participar de sessões espirituais e delas sair pior do que chegou?, questionou-me o caboclo.

  – Pelo que vejo pode, mas não deveria, entoei com firmeza.

  – Há algo de errado, certo? Os terreiros são templos de cura; é inadmissível que as pessoas procurarem o remédio e encontrem doenças espirituais tão graves como as vistas na rua.

   Balancei a cabeça em acordo e unindo os fios do raciocínio revelado, tentava costurar, sem remendos, os meus conceitos. Queria algo que pudesse vestir a alma, sem deixá-la desnuda nos momentos de frio.

  – Qual o motivo dessa realidade?, fiz questão de saber.

  – Infelizmente, reina uma série de violências espirituais, disse o caboclo.

  – Por que os guias não intervêm, se o cenário descrito é absolutamente real e melancólico.., contestei.

  – Os homens constroem as suas verdades e se reúnem para em cima delas trabalhar. Então, é preciso saber: que verdades são essas? O livre-arbítrio também comanda a gira e diz se os trabalhos serão bons ou não. Dentro dos centros, quem bate cabeça, pede bênçãos, reverencia supostos guias e confia na ronda é você. Ninguém lhe obriga; muito menos os bons espíritos que, em certos casos, manifestam-se nessas zonas densas para aliviar a dor dos médiuns.

  Incomodado, comentei:

  – Jamais pensei nisso. Acreditava que no simples fato de pisar numa casa, estava presente a concordância dos guias.

  – Existem casas boas e ruins. Quem deve fazer a escolha é você, enfatizou o caboclo. – Quando entrar, não julgue, permita-se observar o desconhecido para aprender, analise se os trabalhos são caridosos, e as mensagens inteligentes; seja digno, procure um ambiente cujas suas forças morais possam evoluir e, acima de tudo, peça proteção, exercite a fé que já conquistou e lembre-se: “orar e vigiar” são recursos insubstituíveis.

  – E os enganados, as pessoas de bom coração?

  – Você não julga enganados, por exemplo, os evangélicos?

  – Sem dúvida, afirmei veementemente.

  – Pois, então, os umbandistas não escapam à regra. O sacerdócio nem sempre é um exercício de amor; os interesses do ego, não raro, falam mais alto, e, da mesma forma, que existem os enganados, existem os que conhecem e aceitam, tranquilamente, os desvios de comportamento, porque neles se reconhecem.

  – Entendo...

 – Muitos médiuns ao entrarem numa corrente de Umbanda, literalmente, entregam suas cabeças; nesse ato, oferecem o comando de suas vidas e perdem o poder de questionar. Aceitam tudo passivamente, até mesmo os maiores descalabros em nome de uma hierarquia autoritarista. A religião não pode formar mentes submissas. O objetivo é a liberdade. O entendimento acima da matéria. Se as informações do bem realizado, escaparem ao conhecimento dos pais e mães de santo, não há problemas. A caridade não tem dono. Aliás, tem sim: Deus.

   – E os guias abandonam o médium?

  – Eles trabalham por amor e cuidam de lhes dar intuições. Nem sempre ouvidas. Diga-se que em ambientes nebulosos, onde imperam maldades, a energia predominante é triste, avessa à beleza dos Orixás. Não à toa, alguns médiuns passam anos de sofrimento, aprisionados, sem a certeza, inclusive, de incorporar os seus verdadeiros guias.

  O meu espanto foi inevitável.

  – O médium pode se concentrar para receber à luz e ser surpreendido por eguns, mesmo em terreiros com tantas firmezas?

 – Certamente, respondeu o caboclo. – As entidades encontram as portas invisíveis que dão acesso a alguns terreiros fechadas. Nesses ambientes, os sacerdotes fazem acordos com certos espíritos e dependendo do nível dos pedidos feitos e aceitos, tornam-se reféns de suas próprias ações. Infelizmente, a irresponsabilidade atinge também os membros da corrente que, sem perceber, vibram numa atmosfera trevosa.

  Comecei a chorar, quando um forte cheiro de arruda tomou o ambiente, e, aos poucos, foi modificando a energia que me cercava. O caboclo, assim, retornou a falar:

  – O bem ao próximo não é uma alegoria perdida nos evangelhos, sem forças para chegar aos anos atuais e penetrar nos costumes modernos. Se a caridade nos foi ensinada há uma razão de ser, santa e divina. Muitos pegam a palavra, deitam sobre ela e não fazem nenhum juízo de valor. A caridade não pode ter o sentido vago que lhe impõe como se fosse uma simples esmola, distribuída a bel-prazer, em datas estabelecidas. O bem reforça a natureza social do homem; Deus tudo fez e tudo faz, mas permite, em sua infinita sabedoria, que os seus filhos sintam, por méritos, as virtudes dos céus lhe penetrarem o espírito. Através das relações sociais, os homens conscientes chegam à conclusão de que o individualismo é o fracasso da espécie; enquanto, a fraternidade, o grande triunfo. Observe a vida e leve na memória o que lhe digo: ninguém está livre de fazer um pedido de socorro. Se por experiências vindouras, você chegar a outro termo, tudo bem; não quero lhe vender idéias; apenas, transmiti-las e dar-lhe a chance de chegar as suas próprias verdades, definitivas ou não.

   – Uma verdade me domina, caboclo! O médium precisa ser preparado para entrar em contato com os problemas externos. 

   – Perfeitamente. O público constitui uma das essências da Umbanda! Aruanda deseja que todos os filhos da terra estejam sadios de corpo e espírito; no entanto, não ignora as dificuldades da caminhada; sabe que a sociedade está cheia de pessoas doentes; e são, justamente, essas almas o motivo maior de um terreiro estar aberto, ou pelo menos, deveria ser. Lembra quando eu lhe disse que “ninguém está livre de fazer um pedido de socorro”?

  – Lembro sim.

  – Da mesma forma, ninguém está livre de ouvir um pedido de socorro. Na vida, somos erguidos para aprendermos a erguer. Eis o círculo virtuoso de Umbanda. O auxílio oferecido nas horas de desespero é valioso: a ação cria laços de amizades, faz o benfeitor se iluminar e o socorrido fortalecer a sua fé. O amor cativa. Não tenha dúvidas: o amigo de quem você tanto gosta precisa ser atendido no seu pedido de socorro, para, no futuro, ter conhecimento de causa e poder servir àqueles que sofrem do mesmo mal.
  – Por isso, o senhor disse: “o melhor que você tem a fazer é não incorporar”?

  – Sim. O médium, com sérios distúrbios emocionais, perda de sono e dores, precisa de um tempo para se reequilibrar. O cérebro é uma máquina poderosa, mas, obviamente, tem limites. Os eflúvios negativos da obsessão enfraquecem a vigília, desvitalizam a matéria e fazem o pensamento se perder no caos. A incorporação desregrada, nestes casos, ameniza a carga sem vencê-la por completo. Por isso, é muito importante proteger o corpo mediúnico. Nada substitui a paciência e o devotamento. Filho, tenha sempre em mente a figura do preto-velho no toco, segurando o rosário e evangelizando o iniciante. Esses guias maravilhosos são exímios psicólogos do espaço, e, sob o cuidado deles, o médium novato saberá, exatamente, a hora certa de retornar o exercício ostensivo das manifestações.


Neste link, encontra-se o texto que precedeu esta narrativa. 



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