quarta-feira, 30 de abril de 2014

O silêncio e o grito

De vez em quando, indignar-se faz bem.
Ainda mais para aqueles que conhecem o certo,
mas fecham os olhos e assumem o papel de cúmplice.
Felizmente, o mundo gira.
É só esperar...
Então, o sujeito que, hoje, se cala será obrigado a gritar,
pois a sua hora de ser ferido também chega.
Uma cristalina questão psicológica:
Alguns opressores não conhecem limites e nem a gratidão.
Eis que a figura, antes idolatrada, passa a vestir a capa de algoz.
E surge a inevitável pergunta: por que a vítima, da vez, não se indignou antes?
Fácil. A dor dos outros não importa...

segunda-feira, 28 de abril de 2014

O amor que conduz à Aruanda

   Eram lindas as suas pregações. Não havia como as pessoas não se emocionarem. Ele estava liberto do tom eclesiástico e dos dogmas cheirando a mofo. Preferia, sempre, falar ao coração, tocar no ponto delicado da alma, exaltar os esforços em direção ao amor e fazer da sua missão um tributo à fé. Aprendeu, também, com o tempo, esse senhor cheio de sabedoria, que, apesar de ser um padre conhecido e procurado, não era melhor do que ninguém. Foram diversas as vezes em que o velho sacerdote muito mais ouviu do que falou. Dizia o necessário quando solicitado, jamais para fazer pose ou repetir a surrada ladainha. “Homem de Deus no meio do povo”, assim o definiu certo poeta, que fazia trova na praça, em frente à Igreja. Porém, a dileta humildade lhe impedia de aceitar as honras – “ sirvo, cheio de limitações, o Cristo de quem sou camarada”, o padre contemporizava para suavizar o impacto dos elogios aos olhos daquela gente simples...

   Sabia ele, perfeitamente, da alma mística do brasileiro. Nas missas ou em rodas de cantigas, o povo dava um jeito de reverenciar o Sagrado. Deus estava muito presente na vida de todos. E como as dificuldades eram imensas, devido à pobreza, bastava uma doença e a falta de dinheiro para comprar remédios, que a mãe desesperada procurava a Igreja – ia fazer orações em favor do filho amado. Não raro, as maternas senhoras perguntavam ao padre o jeito de orar. E ele dizia “Deus escuta o teu silêncio”. Jamais, infantilizou os leigos ou se utilizou da teologia acadêmica para persuadir alguém de algo. Admitia, sem problemas, ser convencido de uma verdade maior do que a sua. Jamais se punha fechado aos movimentos do mundo. Dizia-se pronto a receber o reflexo das estrelas no espelho da sua alma, ainda mais se ela chegasse, mansamente, alheia a usina que continha em si.

    Por essas, ele alimentava o costume de ir aos confins da cidade para levar conforto aos descamisados. Numa dessas caminhadas, o querido padre recebeu o convite de um lavrador amigo:

    - O senhor, aceita tomar café na minha casa, é bem ali?

   A casinha feita de sapé, no meio do mato, comoveu o sacerdote. “Como esse homem, que trabalha, dia e noite, encontrará descanso numa morada tão pobre?”, inquiria-se, em pensamento. Ao entrar no local, ele percebeu o quanto se equivocara. Não havia luxo, mas o clima era contagiante. A bondade do preto-velho e de sua esposa parecia se impregnar pelas paredes e iluminar o visitante, tamanho o bem-querer dos anfitriões. Ainda admirado, o padre se sentou no banquinho feito de toco e observou a limpeza do fogão à lenha, o brilho das latinhas de alumínio que serviam de copo e a beleza impecável das panelas arriadas, expostas na prateleira de madeira. Quanto cuidado e capricho! Se o ambiente externo, perfumava o espírito de quem se achegava, o que dizer, então, do recôndito, onde o casal guardava os sentimentos?

  – Aqueles corações!, extasiava-se o sacerdote ao contar a ternura de ambos aos amigos. Diferentemente dos lares, que visitava para levar ânimo, padre Leônidas não precisou se esforçar na tarefa cristã naquele lugar. Dona Catariana e Seu Rafael viviam em paz e a cabeça branca do casal não revelava, apenas, a idade. Os cabelos adornavam moradas de grande sabedoria. Apesar do pouco estudo, vovô e vovó conheciam a terra, as matas, as águas e o poder da folha. Viviam como legítimos filhos de africanos. Reverenciavam a natureza na força de seus elementos, cantarolavam versos em Iorubá e jamais se esqueciam dos Orixás. A ancestralidade imprimia cicatrizes definitivas no espírito deles. O padre sabia disto e, de modo algum, cogitou a possibilidade de convertê-los à igreja, porque acreditava na liberdade e nunca imporia amarras a irmãos, que tiveram seus ancestrais presos aos grilhões do cativeiro. Em vez do discurso romano, animava-se em escutar as histórias vindas das tribos de “além mar”, sem se esquecer do Evangelho de Jesus.

   A diversidade espiritual tornava a conversa um prodígio de conhecimento e afeto. Nada era dito de qualquer jeito. As palavras vinham carregadas de axé e louvor. Padre Leônidas se rejubilava ao falar do Reino dos Céus prometido pelo Cristo. Dona Catarina ouvia atenta, deveras encantada pela doutrina de amor. Seu Rafael, não menos maravilhado, perguntava ao amigo católico qual o maior tesouro deixado por Jesus?
   – “Amai-vos uns aos outros como a ti mesmo”!

   A frase simples fez brilhar uma luz ambiente. Sensibilizado, o padre continuou: - Por esta máxima, vejo os enormes desafios que tenho na minha missão. Desde o seminário, trago a preocupação de ressuscitar esse sentimento nas pessoas e caminhando, muitas vezes, sinto-me frustrado.

   – Por quê?, quis saber o velho Rafael.

   – Tenho a sensação nítida de que falta algo. Nestes dias, uma mãe visitou a Igreja em busca de ajuda. Estava desesperada. O filho dela havia morrido. Falei-lhe de Deus e do mistério da fé, mas nada adiantou. Em prantos, ela só conseguia dizer: “acabou! A minha vida acabou junto com a do meu filho!” Ao ouvir aquelas palavras, senti um vazio enorme. A teologia que aprendi me pareceu alegórica demais para consolá-la.

    A velha Catarina olhou, vagarosamente, os olhos do padre e disse: – O senhor não é obrigado a ter todas as respostas. A cada passo que damos no universo, adquirimos algo que será importante lá na frente. Oxalá, todos os homens tivessem a consciência de que lhes falta alguma coisa. Sentimos, sempre, a ausência de elementos em que podemos tomar posse. Não damos conta de que nos faltam palavras e gestos de amor.

    O padre sorriu como de costume e com o discurso manso, agradeceu à sabedoria da grande amiga. Respondeu também que, intimamente, acreditava na continuidade da vida e que não se via no posto “de representante de Deus na Terra”. É verdade que o sacerdote não entrava em rixas contra os dogmas da Santa Sé, no entanto, não lhes dava exagerada publicidade. Preferia alimentar a dimensão do cuidado pelas criaturas do Pai. Em suas preleções, pedia que “os irmãos, ali reunidos, vivessem fraternamente e toda a noite, antes do sono, fizessem a si mesmos estas indagações: quantas lágrimas eu enxuguei? A quantas crianças providenciei o sorriso? A quantos doentes terminais devolvi a esperança na hora da morte? Assim, o padre vivia exortando a compaixão – essa formidável atmosfera da vida em que os homens se amam mutuamente.

    Passado algum tempo, Leônidas levou para Aruanda o amor incondicional por Jesus. Bem antes dele, coisa de uns 5 anos, haviam partido o velho Rafael e a velha Catarina. Já adoentado, o padre, em suas orações, recorreu ao Evangelho de João a fim de refletir.       Deparou-se, de olhos gastos pela avançada idade, com a seguinte passagem: “Na verdade, na verdade, eu vos digo: se um grão de trigo tomba na terra e não morre, ele permanece sozinho; mas se ele morre, ele aporta muitos frutos”. Ao ler a dita mensagem pela enésima vez, leu-a como nunca. Estava acompanhado. De um lado, o vovô; do outro, a vovó. Chorou muito. E vagarosamente, repetia: – o corpo é o grão que tomba e morre; já os frutos representam as conquistas do espírito, que semeou o bem sobre a terra fértil.



terça-feira, 22 de abril de 2014

O homem que se desviou da sua missão

   Um camarada me disse que se tivesse dinheiro nada o impediria de voltar à Bahia, para rever os orixás. Perguntei-lhe, espantado, se eles não vibravam em seu ori? Surpreso, ouvi a mais sonora lamentação de minha vida. “Que saudades de Ogum, meu nobre amigo. Das batalhas que vencíamos juntos, dos desvalidos que defendíamos no caminho, dos órfãos que amparávamos nas ruas e do ódio que cortávamos com a lâmina de Sua espada”. A memória nostálgica trazia, em si, enorme tristeza, lembrança dolorida, sentimento preso ao passado, de experiências marcantes e, quiçá, sem-iguais. É dura a sensação de tempo perdido, principalmente, quando se trata de uma mente sonhadora, cheia de planos e idéias altruístas. Lá se iam 12 anos, afastado da Boa-Terra. A promessa de uma vida melhor não vingara. Nem tanto pelo lado financeiro. Não ficara rico, é verdade, mas dava para seguir, sem sobressaltos. O problema estava no brilho dos olhos, que não se via mais. Aquele homem faceiro, bom de papo, bem humorado e místico havia sumido. Por onde andara esse tempo todo? Nunca poderia imaginar que um conselho ignorado custasse tão caro...

  Maravilhoso, o sol reinava absoluto no fim da tarde, bronzeando a miragem do infinito. Aproveitei a paisagem praiana para fazer uma oração ao mar. Agradecia ao povo das águas a proteção do ano inteiro. Era 31 de dezembro. O calendário estava prestes a virar, e a minha vida, também.  No inicio de janeiro, partiria para São Paulo. Estava decidido. A famosa metrópole me esperava. Não iria levar filho, nem mulher. Eles me esperariam. Afinal, a viagem havia sido planejada. Sem dúvidas, valeria a pena! No mais, eu traria no bolso uma vida melhor.

   Deitei na areia e dormi. Tive um sonho. Nele, Ogum aparecia paramentado com suas vestes. Inacreditável, então, foi a minha felicidade:

– Ogunhê, meu pai!, saudei-o de coração aberto.

    Aproximando-se, Ele riscou no chão com a ponta da espada: “Não vá. Aqui é o seu lugar. Quem lhe pede é minha mãe”. Ao ler aquilo, gritei: “Odoya”. As ondas se levantaram, os saveiros vinham ao longe, tremulando na tempestade. Filhos e mulheres, aflitos, esperavam a chegada de seus amados pescadores.
– Proteja-os, Iemanjá, pediam as vozes de fé.

  O mundo girava; na verdade, era a minha cabeça. Iansã cortou o céu com seus relâmpagos. O clarão me fez acordar. De olhos abertos, nada de temporal. Somente, a noite é que havia chegado. O vento fresco servia-me de calmante. Estava muito nervoso. O que fora aquilo? Por que Ogum me deixara tal mensagem? Os lapsos de memória me mostravam o desespero no mar revolto e o cais muito longe.

Não, não pode ser! Esperei tanto por essa viagem e agora vou abandoná-la por um sonho? Jamais!

   Em casa, às portas do Ano Novo, minha esposa aconselhava-me: – Ogum não traria uma mensagem de Iemanjá se não fosse coisa seria, homem.

  – Por que justo agora? Meus planos como ficam?

 – Ogum é o Senhor das Estradas, o trajeto que você quer fazer, Ele já conhece, alertava-me.

 – Está decidido: eu vou e volto de São Paulo rico! Oxum há de me mostrar os caminhos do ouro!

    Numa manhã qualquer, bem cedinho, levantei antes que o galo cantasse e fui à rua espairecer. A cabeça girava, cheia de dúvidas e a fé inabalável na viagem era só da boca para fora. Intimamente, o medo me tomava. Por três vezes, acordei assustado, com palpitações e desespero. Precisava de energia positiva. Frases cruzavam os meus pensamentos, sem que eu fizesse força para elaborá-las. Temi ficar maluco naquele estado de desequilíbrio. Recordei, num lapso, que em todas as angústias passadas, o mar sempre me acalmou. Aqueles fluídos vindos da imensidão foram sempre a mais doce erva, um calmante natural absolutamente eficaz. Enquanto, passeava os passos tornavam-se curtos, em tom demorado. Conforme a brisa me batia, as idéias eram aclaradas. Coisa estranha, e, ao mesmo tempo, consoladora. Com nitidez, eu percebia que alguém sussurrava. O som, quase imperceptível, ressoava num dito de alerta: “não vá”.
    
   A praia ficou para trás, atravessei a calçada e pensei na roda de capoeira. A poucos metros, havia uma. Era de lei. Todos os dias, desde que fizesse sol, a meninada se reunia para brincar um pouquinho de África e fazer viver a herança do povo que veio do lado de lá. Como eu amava aquela arte singela para o gosto e com reflexos pueris n’alma! Antes de chegar, olhei à esquerda: vi um caminho; à direita, atrás e à frente, também. Estive no meio da encruzilhada. Gritei para onde ir? Dos quatro cantos uma gargalhada e, no piscar de olhos, o movimento que sumia, em flashes, na dança inconfundível. Quem sorria? Quem dançava? Era Ele, o dono da rua.

   Segui em linha reta por intuição. A brincadeira estava armada, e os cânticos já se faziam ouvir. Retirei da bolsa a roupa branca; vesti-a em instantes, saudei os capoeiras, tratei de colocar um sorriso no rosto. Seria a minha despedida. Entrei na roda, com movimentos cadenciados, só para curtir o momento, deixar a melodia do berimbau invadir a mente e contagiar o corpo. Emocionado, esqueci a brincadeira e continuei a gingar; foi quando o jogo de cintura deu errado e, acidentalmente, levei uma senhora bênção. Parecia mentira, mera impressão. Antes fosse tudo isso. Mas, não era. No fundo, Ogum me dava o seu último aviso.
Teimoso, desconsiderei os fatos. A lembrança de minha mãe, uma sábia filha de Nanã, dizendo-me na infância: “resista o que for; não abandone a sua missão”, refletiu e apagou-se. Um pouco cansado, cumprimentei a minha gente e cuidei de abraçar um a um. Prometi retornar em breve. Aleguei que não conseguiria “ficar muito tempo longe”. Uma meia-verdade. A saudade já me acompanhava naquele momento. Todas aquelas figuras diziam algo importante para mim, porém o sonho de triunfar no rumo das coisas materiais falava mais alto, e de tão estridente mudava a minha respiração a ponto de me deixar ofegante. Com a velha mochila nas costas, batia às mãos e escutei o desejo sincero: “Ogunhê, meu Pai, proteja o nosso amigo”.

   De retorno a casa, resolvi mudar o percurso habitual. Por conta própria, quis passar pela estrada de ferro. Vagarosamente, caminhei. Nenhuma intuição me veio. Por que viria? Não estava eu tão decidido, senhor das minhas ações, conhecedor do destino? As energias dos Orixás percorrem a Terra, quem puder ver e não quiser, está selando os seus caminhos. Se Ogum jamais aceitou uma coroa de jóias, devido a sua humildade, não devia eu, um simples filho, desejá-la por ganância. Não devia, é verdade. No entanto, desejei...

  ... Por não saber o que é bom. A simplicidade da vida jamais foi motivo de lamento pelos cantos. Minha mulher cozinhava para fora, o trabalho na fábrica de metalurgia sempre me trouxera um pouco mais que o necessário, e o meu filho, além dos estudos, brincava como toda criança.

  No dia do vôo, ventava demais. Havia um temporal armado nas nuvens. Enquanto, as famílias se abraçavam, uma eletricidade rasgou o firmamento, pondo medo no semblante das pessoas. Eu, que pela primeira vez subiria num avião, temi a estréia. Em silencio, roguei aos ventos que desviassem as nuvens da minha rota. Não fui atendido, e a decolagem foi adiada. Exatas cinco horas precederam a partida. Bem nervoso, apertava, num abre e fecha, as minhas mãos frias e esbranquiçadas. A respiração, em face da angústia, também não era das melhores. O peito, como se tivesse um peso em cima, fazia-me evitar qualquer conversa. Apertei a medalhinha do cordão para rezar. Tentei imaginar uma torrente de luz que me envolvesse; não consegui. O máximo que via era uma espada riscando traços sobre a cor cinza do céu.

   Viajei no tempo, sem me dar conta do que acontecia. O desgaste emocional fora tamanho que só me restou cair no sono. Juro de coração: até fiz força para resistir, mas não deu. O cansaço, certamente, era bem maior do que a minha vontade. Dos males, o menor. Dei trégua à mente tão açoitada pelos pensamentos – vacilantes e desobedientes, quase uns azougues, coisa de enlouquecer.

   Ao acordar, já em terra firme, lembrei-me, com alguma nitidez, do sonho que tive. E nisto não há surpresa. Por mais paradoxal que possa parecer, enquanto eu estava no ar, a epopéia onírica me levava às margens de um rio, onde se podia ouvir um canto divinal. Maravilhado, caminhei fazendo os ouvidos de bússola; quando de repente, vi sendo arrastada pelas correntezas uma coroa que brilhava intensamente. Sai correndo, aos gritos de: “É ouro, é ouro!” Mergulhei para alcançá-la, e a jóia desapareceu como miragem.

  A cena viva nas águas doces me trouxe um presságio desanimador. Que intuição pura! De tão realística chegava dar medo. Pensativo, apanhei a bagagem e comecei a fitar o relógio enquanto o meu futuro colega de trabalho não aparecia para me levar à hospedagem. O combinado era: assim que eu chegasse, ele estaria apostos. Ocorreu, justamente, o contrário – esperei por duas horas, que mais pareciam quatro, tamanha a minha inquietação.

   Quando, enfim, Manoel – eis o nome do “pontual funcionário” – chegou, respirei aliviado. Embora, ele tenha justificado o atraso, confesso: não dei muita importância, respondi com o cordial “sem problemas” e, logo, a prosa ganhou novo rumo. Dentro do carro, conversamos sobre as atividades da empreiteira e os motivos que me fizeram aceitar a proposta de outra firma, longe da Bahia. Ficou assinada pelas minhas palavras a motivação única e impreterível da mudança: “dinheiro, grana, verba...”. Nada além dessa secura espiritual.

  Talvez, o gentio anfitrião tenha ficado zonzo com a dimensão da ganância. Quem sabe eu, noutra época, também ficasse. Agora, o que se via era um filho de Ogum acorrentado pela ambição. Não do Orixá, isso jamais, mas a sua: triste homem escritor de destinos, não sabe o poder que possuí. Fazer o quê? Antes muitas coisas, inclusive, tomar a decisão certa. A prosperidade mora no mesmo lugar desde sempre e não se desloca, quem quiser desfrutá-la, siga a dica: que vá até ela. Eu a encontrei pertinho de mim, mas resolvi buscar uma maior, talvez, a dos outros. E se é dos outros não atende as nossas medidas. No âmago dos sentimentos – um lugar interno, onde somente nós podemos visitar – cresce a sensação de vazio.

  Você se prepara para dormir. O apartamento é bom, a cama macia, não falta água, nem comida. O conforto está por toda parte. Como justificar a tristeza e os calafrios? Observo ao redor e o que tenho?  Cozinha sem tempero, casa que não tem infância, vizinhança sem amigos.   

  E assim se deu a última década da minha vida. Envelheci demais. Tomei uma aparência soturna. Perdi o ânimo de ser feliz. Até os 6 anos, desde a partida, o pouco que me alegrava eram as ligações diárias para Bahia. Depois, nem isso. Mariana, minha bela esposa, tornou-se ex. Não agüentou a solidão. Graças a Oxalá, ela criou o nosso filho dignamente. Pelas notícias que me chegavam o “meu menino” havia se tornado um homem bonito, estudioso e um grande companheiro da mãe. Menos mal! Conseguiu algo que eu não fora capaz.


  Hoje, em 2014, estou de volta à Bahia. Que o Senhor do Bonfim me proteja! Quero dar voz a minha missão. Fazê-la ecoar dentro de mim. E nunca mais abandoná-la. Espero que dê tempo. De certo, hei de merecer um recomeço. 

segunda-feira, 14 de abril de 2014

A mediunidade, o choro da menina e o depoimento da criança

      Ajoelhado, o menino buscava conforto para as suas dores. Os olhos infantis fitavam a imagem do Cristo, encostada na parede, e derramavam gotas de esperança nas páginas do Evangelho de Mateus. Nenhuma palavra, naquele instante, podia ser ouvida. A criança, em profunda meditação, recorria ao silêncio. Surpreendentemente, o pequeno filho de Deus suportava as misérias que o assolavam sem murmurar uma única queixa. Quando, enfim, abriu os lábios, leu com a mesma voz cândida, que sempre recorria ao Pai-Nosso: “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados...”. Antes de se levantar, a pequena criatura, de semblante renovado pela prece, bebeu a água iluminada por seus mentores espirituais.

    Ao sair do quarto, que dividia com seu irmão, ele procurou a porta da rua e foi para praça brincar. Com a bola presa entre o corpo e as mãos, caminhava até o campinho de futebol. No meio do percurso, a terna alma deparou-se com uma jovem tristonha e solitária, sentada no banco de concreto da paisagem urbana. Como se pudesse mensurar em seu próprio peito o sofrimento alheio, o nobre amigo cumpriu mais uma etapa de sua admirável jornada. Recordou-se da cena em que Jesus perguntara a Maria de Magdala: “Mulher, por que choras?”, e se aproximou com intuito pueril, ciente de que era, tão-somente, mais um entre tantos colaboradores da Estrela de Nazaré.

    O franzino e meigo camarada sentiu por aquela moça, na plenitude da vida física, um amor cujos homens adultos não poderiam entender. Ele se aproximou e através da mediunidade enxergou um longo estado de depressão. Apesar da beleza indígena, faltava brilho a jovem. Suas bochechas eram pálidas, o cabelo sem viço e os olhos – ah, os olhos! – pareciam sem vida. Com duas balas no bolso, o menino ofereceu uma à bela cabocla. Ela aceitou, agradeceu e perguntou-lhe qual o seu nome? Explicativo, ele respondeu: “Pedro, e foi a minha mãe quem escolheu”.

  - Muito bonito, elogiou a jovem.

   Agora, feliz pela oportunidade de falar àquele coração, que se mostrava receptivo, Pedrinho conversou feito gente grande:

      - Assim como você se sente, eu também me sinto. Dói muito a sensação de estar só, mesmo quando acompanhado por uma multidão, mas há nisso uma oportunidade santa para nos conhecermos melhor. Há tempos, deixei de me lamentar. Não posso viver contra a minha natureza, a fim de agradar os outros. Prefiro agradá-los por intermédio do amor. Muitas pessoas dizem que preciso conhecer o mundo, passear, freqüentar festas e lidar com gente da minha idade. E eis que eu sempre replico: apresentem-me os depressivos, os desesperados, os que curtem as dilacerantes misérias da alma e, assim, vocês não só me ajudarão a conhecer o mundo, como também a modificá-lo. Não quero fugas!

    A jovem recebeu o conforto da mensagem inesperada e se identificou, profundamente, com a filosofia que relatava a pureza e a sabedoria de uma criança. Menos tímida, ela retirou o espinho do medo, que lhe sufocava a auto-estima e resolveu falar:

  - Perdi o ânimo de viver. Não tenho motivação para nada. Nem da minha aparência cuido mais. Fico em casa, presa a uma vontade, sem-fim, de me isolar. Cansei da paisagem que não muda, das pessoas que dizem sempre a mesma coisa e da falta de acontecimentos novos.

   Pedrinho lamentou o clima sombrio que a envolvia, foi ameaçado por alguns pensamentos a recuar e abandoná-la ali, na amargura. Num gesto de doçura, o menino ignorou a má sensação e pegou a mão da jovem. Estava gelada e o pulso, agitado. Olhando-a, fixamente, ele pediu atenção para, em seguida, levá-la às lágrimas:

- O materialismo não lhe basta. Você pode buscar refúgio no consumo de roupas, jóias e na busca de grandes paixões, mas não encontrará. Neste exato segundo, ressoa dentro do seu íntimo o eco do mundo invisível.

   Surpresa, a linda cabocla questionou: - como sabe o que sinto?

    Pedrinho lhe saciou a dúvida: - Eu também vivo esta situação. Passado tanto tempo, aprendi que preciso ter paciência. A dor será superada. Não posso deixar o pânico invadir a minha mente. A série de ataques espirituais nos ensina a ter autocontrole e a redobrar o ímpeto nos caminhos da fé. O médium, em prova, é submetido ao estresse. Se ele não põe prazo para as dificuldades se afastarem e luta - sem desespero, com os recursos do amor, a vitória, certamente, virá. Quem aprende a se conhecer, cria forças para servir aos semelhantes no terreno da caridade. É simples assim, não se espante! Doamos aquilo que temos. E feliz aquele que descobre a paz dentro de si, porque terá, sempre, uma palavra de conforto para doar.

   - Tenho perdido noites de sono inteira por não conseguir me concentrar. Os meus pensamentos parecem saturados, não sei mais o que dizer a mim mesma, contou a jovem.

   Pedrinho retornou a fala: - É você, em espírito, quem grita; e o seu corpo, conseqüentemente, sofre movido por uma grande sensibilidade, que o faz captar até “o vento que passa”. Por favor, não se desespere. Enquanto, muitas perdem a saúde brigando por riquezas e poder, a sua delicada alma clama e pede a oportunidade de se dedicar ao amor. Creia em Deus! A hora está próxima e você há de encontrar a bênção que tanto pede.

A moça abraçou o menino como se ele fosse o seu próprio filho e acreditou que aquela linda mensagem abriria os seus caminhos espirituais.



domingo, 13 de abril de 2014

A imagem inesquecível

     O canto entoado tinha graça, leveza, poder de oração e saudava a Mãe das Mães num ritual de fé. Sentado no banquinho, enquanto apreciava a beleza do todo, eu o vi reaparecer. Maravilhado, perguntei-lhe:

- Por quê, você me abandonou?

E ele, com o semblante sereno, meditando sobre as águas calmas do mar, respondeu-me:

- Eu nunca lhe abandonei.

   Não pude conter as lágrimas ao receber as ondas invisíveis daquele pensamento, que nascia de uma mente contemplativa, reunindo o axé do seu reino, na Aruanda celestial - lugar onde não se pode chegar com guerras. Talvez, o choro que de mim brotou fizesse crer que ali estava alguém em sofrimento. No entanto... O meu coração ficou como as águas do oceano: manso, brando e pacífico. Muitos dizem que ele traz uma vibração de luta, mas eu só senti amor. Se pudesse riscaria entre as suas armas uma flor, que simbolizaria, perfeitamente, o cenário daquela imagem sublime e encantadora.