segunda-feira, 28 de abril de 2014

O amor que conduz à Aruanda

   Eram lindas as suas pregações. Não havia como as pessoas não se emocionarem. Ele estava liberto do tom eclesiástico e dos dogmas cheirando a mofo. Preferia, sempre, falar ao coração, tocar no ponto delicado da alma, exaltar os esforços em direção ao amor e fazer da sua missão um tributo à fé. Aprendeu, também, com o tempo, esse senhor cheio de sabedoria, que, apesar de ser um padre conhecido e procurado, não era melhor do que ninguém. Foram diversas as vezes em que o velho sacerdote muito mais ouviu do que falou. Dizia o necessário quando solicitado, jamais para fazer pose ou repetir a surrada ladainha. “Homem de Deus no meio do povo”, assim o definiu certo poeta, que fazia trova na praça, em frente à Igreja. Porém, a dileta humildade lhe impedia de aceitar as honras – “ sirvo, cheio de limitações, o Cristo de quem sou camarada”, o padre contemporizava para suavizar o impacto dos elogios aos olhos daquela gente simples...

   Sabia ele, perfeitamente, da alma mística do brasileiro. Nas missas ou em rodas de cantigas, o povo dava um jeito de reverenciar o Sagrado. Deus estava muito presente na vida de todos. E como as dificuldades eram imensas, devido à pobreza, bastava uma doença e a falta de dinheiro para comprar remédios, que a mãe desesperada procurava a Igreja – ia fazer orações em favor do filho amado. Não raro, as maternas senhoras perguntavam ao padre o jeito de orar. E ele dizia “Deus escuta o teu silêncio”. Jamais, infantilizou os leigos ou se utilizou da teologia acadêmica para persuadir alguém de algo. Admitia, sem problemas, ser convencido de uma verdade maior do que a sua. Jamais se punha fechado aos movimentos do mundo. Dizia-se pronto a receber o reflexo das estrelas no espelho da sua alma, ainda mais se ela chegasse, mansamente, alheia a usina que continha em si.

    Por essas, ele alimentava o costume de ir aos confins da cidade para levar conforto aos descamisados. Numa dessas caminhadas, o querido padre recebeu o convite de um lavrador amigo:

    - O senhor, aceita tomar café na minha casa, é bem ali?

   A casinha feita de sapé, no meio do mato, comoveu o sacerdote. “Como esse homem, que trabalha, dia e noite, encontrará descanso numa morada tão pobre?”, inquiria-se, em pensamento. Ao entrar no local, ele percebeu o quanto se equivocara. Não havia luxo, mas o clima era contagiante. A bondade do preto-velho e de sua esposa parecia se impregnar pelas paredes e iluminar o visitante, tamanho o bem-querer dos anfitriões. Ainda admirado, o padre se sentou no banquinho feito de toco e observou a limpeza do fogão à lenha, o brilho das latinhas de alumínio que serviam de copo e a beleza impecável das panelas arriadas, expostas na prateleira de madeira. Quanto cuidado e capricho! Se o ambiente externo, perfumava o espírito de quem se achegava, o que dizer, então, do recôndito, onde o casal guardava os sentimentos?

  – Aqueles corações!, extasiava-se o sacerdote ao contar a ternura de ambos aos amigos. Diferentemente dos lares, que visitava para levar ânimo, padre Leônidas não precisou se esforçar na tarefa cristã naquele lugar. Dona Catariana e Seu Rafael viviam em paz e a cabeça branca do casal não revelava, apenas, a idade. Os cabelos adornavam moradas de grande sabedoria. Apesar do pouco estudo, vovô e vovó conheciam a terra, as matas, as águas e o poder da folha. Viviam como legítimos filhos de africanos. Reverenciavam a natureza na força de seus elementos, cantarolavam versos em Iorubá e jamais se esqueciam dos Orixás. A ancestralidade imprimia cicatrizes definitivas no espírito deles. O padre sabia disto e, de modo algum, cogitou a possibilidade de convertê-los à igreja, porque acreditava na liberdade e nunca imporia amarras a irmãos, que tiveram seus ancestrais presos aos grilhões do cativeiro. Em vez do discurso romano, animava-se em escutar as histórias vindas das tribos de “além mar”, sem se esquecer do Evangelho de Jesus.

   A diversidade espiritual tornava a conversa um prodígio de conhecimento e afeto. Nada era dito de qualquer jeito. As palavras vinham carregadas de axé e louvor. Padre Leônidas se rejubilava ao falar do Reino dos Céus prometido pelo Cristo. Dona Catarina ouvia atenta, deveras encantada pela doutrina de amor. Seu Rafael, não menos maravilhado, perguntava ao amigo católico qual o maior tesouro deixado por Jesus?
   – “Amai-vos uns aos outros como a ti mesmo”!

   A frase simples fez brilhar uma luz ambiente. Sensibilizado, o padre continuou: - Por esta máxima, vejo os enormes desafios que tenho na minha missão. Desde o seminário, trago a preocupação de ressuscitar esse sentimento nas pessoas e caminhando, muitas vezes, sinto-me frustrado.

   – Por quê?, quis saber o velho Rafael.

   – Tenho a sensação nítida de que falta algo. Nestes dias, uma mãe visitou a Igreja em busca de ajuda. Estava desesperada. O filho dela havia morrido. Falei-lhe de Deus e do mistério da fé, mas nada adiantou. Em prantos, ela só conseguia dizer: “acabou! A minha vida acabou junto com a do meu filho!” Ao ouvir aquelas palavras, senti um vazio enorme. A teologia que aprendi me pareceu alegórica demais para consolá-la.

    A velha Catarina olhou, vagarosamente, os olhos do padre e disse: – O senhor não é obrigado a ter todas as respostas. A cada passo que damos no universo, adquirimos algo que será importante lá na frente. Oxalá, todos os homens tivessem a consciência de que lhes falta alguma coisa. Sentimos, sempre, a ausência de elementos em que podemos tomar posse. Não damos conta de que nos faltam palavras e gestos de amor.

    O padre sorriu como de costume e com o discurso manso, agradeceu à sabedoria da grande amiga. Respondeu também que, intimamente, acreditava na continuidade da vida e que não se via no posto “de representante de Deus na Terra”. É verdade que o sacerdote não entrava em rixas contra os dogmas da Santa Sé, no entanto, não lhes dava exagerada publicidade. Preferia alimentar a dimensão do cuidado pelas criaturas do Pai. Em suas preleções, pedia que “os irmãos, ali reunidos, vivessem fraternamente e toda a noite, antes do sono, fizessem a si mesmos estas indagações: quantas lágrimas eu enxuguei? A quantas crianças providenciei o sorriso? A quantos doentes terminais devolvi a esperança na hora da morte? Assim, o padre vivia exortando a compaixão – essa formidável atmosfera da vida em que os homens se amam mutuamente.

    Passado algum tempo, Leônidas levou para Aruanda o amor incondicional por Jesus. Bem antes dele, coisa de uns 5 anos, haviam partido o velho Rafael e a velha Catarina. Já adoentado, o padre, em suas orações, recorreu ao Evangelho de João a fim de refletir.       Deparou-se, de olhos gastos pela avançada idade, com a seguinte passagem: “Na verdade, na verdade, eu vos digo: se um grão de trigo tomba na terra e não morre, ele permanece sozinho; mas se ele morre, ele aporta muitos frutos”. Ao ler a dita mensagem pela enésima vez, leu-a como nunca. Estava acompanhado. De um lado, o vovô; do outro, a vovó. Chorou muito. E vagarosamente, repetia: – o corpo é o grão que tomba e morre; já os frutos representam as conquistas do espírito, que semeou o bem sobre a terra fértil.



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