Eram lindas as suas pregações. Não havia
como as pessoas não se emocionarem. Ele estava liberto do tom eclesiástico e
dos dogmas cheirando a mofo. Preferia, sempre, falar ao coração, tocar no ponto
delicado da alma, exaltar os esforços em direção ao amor e fazer da sua missão
um tributo à fé. Aprendeu, também, com o tempo, esse senhor cheio de sabedoria,
que, apesar de ser um padre conhecido e procurado, não era melhor do que
ninguém. Foram diversas as vezes em que o velho sacerdote muito mais ouviu do
que falou. Dizia o necessário quando solicitado, jamais para fazer pose ou
repetir a surrada ladainha. “Homem de Deus no meio do povo”, assim o definiu
certo poeta, que fazia trova na praça, em frente à Igreja. Porém, a dileta
humildade lhe impedia de aceitar as honras – “ sirvo, cheio de limitações, o
Cristo de quem sou camarada”, o padre contemporizava para suavizar o impacto
dos elogios aos olhos daquela gente simples...
Sabia
ele, perfeitamente, da alma mística do brasileiro. Nas missas ou em rodas de cantigas,
o povo dava um jeito de reverenciar o Sagrado. Deus estava muito presente na
vida de todos. E como as dificuldades eram imensas, devido à pobreza, bastava
uma doença e a falta de dinheiro para comprar remédios, que a mãe desesperada
procurava a Igreja – ia fazer orações em favor do filho amado. Não raro, as
maternas senhoras perguntavam ao padre o
jeito de orar. E ele dizia “Deus
escuta o teu silêncio”. Jamais, infantilizou os leigos ou se utilizou da
teologia acadêmica para persuadir alguém de algo. Admitia, sem problemas, ser
convencido de uma verdade maior do que a sua. Jamais se punha fechado aos
movimentos do mundo. Dizia-se pronto a receber o reflexo das estrelas no espelho
da sua alma, ainda mais se ela chegasse, mansamente, alheia a usina que continha
em si.
Por essas, ele alimentava o costume de ir aos
confins da cidade para levar conforto aos descamisados. Numa dessas caminhadas,
o querido padre recebeu o convite de um lavrador amigo:
- O
senhor, aceita tomar café na minha casa, é bem ali?
A casinha feita de sapé, no meio do mato,
comoveu o sacerdote. “Como esse homem, que trabalha, dia e noite, encontrará
descanso numa morada tão pobre?”, inquiria-se, em pensamento. Ao entrar no
local, ele percebeu o quanto se equivocara. Não havia luxo, mas o clima era
contagiante. A bondade do preto-velho e de sua esposa parecia se impregnar
pelas paredes e iluminar o visitante, tamanho o bem-querer dos anfitriões.
Ainda admirado, o padre se sentou no banquinho feito de toco e observou a
limpeza do fogão à lenha, o brilho das latinhas de alumínio que serviam de copo
e a beleza impecável das panelas arriadas, expostas na prateleira de madeira.
Quanto cuidado e capricho! Se o ambiente externo, perfumava o espírito de quem
se achegava, o que dizer, então, do recôndito, onde o casal guardava os
sentimentos?
– Aqueles
corações!, extasiava-se o sacerdote ao contar a ternura de ambos aos amigos.
Diferentemente dos lares, que visitava para levar ânimo, padre Leônidas não
precisou se esforçar na tarefa cristã naquele lugar. Dona Catariana e Seu
Rafael viviam em paz e a cabeça branca do casal não revelava, apenas, a idade.
Os cabelos adornavam moradas de grande sabedoria. Apesar do pouco estudo, vovô
e vovó conheciam a terra, as matas, as águas e o poder da folha. Viviam como
legítimos filhos de africanos. Reverenciavam a natureza na força de seus
elementos, cantarolavam versos em Iorubá e jamais se esqueciam dos Orixás. A
ancestralidade imprimia cicatrizes definitivas no espírito deles. O padre sabia
disto e, de modo algum, cogitou a possibilidade de convertê-los à igreja,
porque acreditava na liberdade e nunca imporia amarras a irmãos, que tiveram
seus ancestrais presos aos grilhões do cativeiro. Em vez do discurso romano,
animava-se em escutar as histórias vindas das tribos de “além mar”, sem se esquecer
do Evangelho de Jesus.
A diversidade espiritual tornava a conversa
um prodígio de conhecimento e afeto. Nada era dito de qualquer jeito. As
palavras vinham carregadas de axé e louvor. Padre Leônidas se rejubilava ao
falar do Reino dos Céus prometido
pelo Cristo. Dona Catarina ouvia atenta, deveras encantada pela doutrina de
amor. Seu Rafael, não menos maravilhado, perguntava ao amigo católico qual o maior tesouro deixado por Jesus?
– “Amai-vos uns aos
outros como a ti mesmo”!
A frase simples fez brilhar uma luz
ambiente. Sensibilizado, o padre continuou: - Por esta máxima, vejo os enormes
desafios que tenho na minha missão. Desde o seminário, trago a preocupação de
ressuscitar esse sentimento nas pessoas e caminhando, muitas vezes, sinto-me
frustrado.
– Por quê?, quis saber o velho Rafael.
– Tenho a sensação nítida de que falta algo.
Nestes dias, uma mãe visitou a Igreja em busca de ajuda. Estava desesperada. O
filho dela havia morrido. Falei-lhe de Deus e do mistério da fé, mas nada
adiantou. Em prantos, ela só conseguia dizer: “acabou! A minha vida acabou
junto com a do meu filho!” Ao ouvir aquelas palavras, senti um vazio enorme. A
teologia que aprendi me pareceu alegórica demais para consolá-la.
A velha Catarina olhou, vagarosamente, os
olhos do padre e disse: – O senhor não é obrigado a ter todas as respostas. A
cada passo que damos no universo, adquirimos algo que será importante lá na
frente. Oxalá, todos os homens tivessem a consciência de que lhes falta alguma
coisa. Sentimos, sempre, a ausência de elementos em que podemos tomar posse.
Não damos conta de que nos faltam palavras e gestos de amor.
O
padre sorriu como de costume e com o discurso manso, agradeceu à sabedoria da
grande amiga. Respondeu também que,
intimamente, acreditava na continuidade da vida e que não se via no posto “de
representante de Deus na Terra”. É verdade que o sacerdote não entrava em
rixas contra os dogmas da Santa Sé, no entanto, não lhes dava exagerada
publicidade. Preferia alimentar a dimensão do cuidado pelas criaturas do Pai.
Em suas preleções, pedia que “os irmãos, ali reunidos, vivessem fraternamente e
toda a noite, antes do sono, fizessem a si mesmos estas indagações: quantas lágrimas
eu enxuguei? A quantas crianças providenciei o sorriso? A quantos doentes terminais
devolvi a esperança na hora da morte? Assim, o padre vivia exortando a
compaixão – essa formidável atmosfera da vida em que os homens se amam
mutuamente.
Passado algum tempo, Leônidas levou para
Aruanda o amor incondicional por Jesus. Bem antes dele, coisa de uns 5 anos,
haviam partido o velho Rafael e a velha Catarina. Já adoentado, o padre, em
suas orações, recorreu ao Evangelho de João a fim de refletir. Deparou-se, de olhos gastos pela avançada
idade, com a seguinte passagem: “Na verdade, na verdade, eu vos digo: se um
grão de trigo tomba na terra e não morre, ele permanece sozinho; mas se ele
morre, ele aporta muitos frutos”. Ao ler a dita mensagem pela enésima
vez, leu-a como nunca. Estava acompanhado. De um lado, o vovô; do outro, a
vovó. Chorou muito. E vagarosamente, repetia: – o corpo é o grão que tomba e morre; já os frutos representam as
conquistas do espírito, que semeou o bem sobre a terra fértil.
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