terça-feira, 25 de agosto de 2015

Em busca do Sol...

“Assim, ele dizia: A que é semelhante o Reino de Deus, e a que o assemelharei? É semelhante a um grão de mostarda...”. (Lucas 13:18-19)

A semente traz, em si, o projeto magnânimo de uma árvore. Com o seu DNA divino – que no porvir lhe conduzirá à belas florações – o minúsculo grão encara o escuro e solitário seio da terra. A partir daí, dá-se a sua luta gloriosa para haurir nutrientes, muitas vezes escassos, a fim de enraizar, em definitivo, as bases da vida que almeja. Quando surgem os primeiros brotos, rompendo o solo bendito que lhe serviu de berço, a semente vislumbra o campo imenso a que se destina. É o início do seu êxtase. A metáfora da individualidade humana que vence as enormes intempéries da existência ao mergulhar no seu “eu profundo”, resgatando, nos recônditos do Espírito, a essência divina que, nela, foi depositada. A terra escura – como analogia ao ego, dínamo das nossas atuais emoções – é a cruz da semente. A tarefa à qual ela foi chamada a cumprir para, por méritos, ser banhada pela luz solar, símbolo do Evangelho, que, para os homens, assim como para todas as obras da criação, é o amor infinito e a sabedoria suprema de Deus.
Vencendo o egoísmo que faz a consciência viver, apenas, para alimentar os seus caprichos, o homem rompe “a casca do eu” e põe a Lei Divina no centro de suas expectativas e tal qual a árvore cresce, em linha vertical, rumo às paragens dos montes celestes. Nutrida pela seiva da caridade, a alma – na sua jornada evolutiva – passa a doar bem-aventuranças, em forma de frutos, sementes e sombra acolhedora, como testemunho da obra de Deus na sua intimidade. Surge, então, na Galileia das nossas vidas – colorida pelos mais belos jardins do sentimento, a exemplo da época de Jesus – a Boa Nova do Reino.

Com Jesus...

“Pois onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí estou no meio deles” (Mateus 18:20).

    Não raro, interpretamos esta mensagem consoladora do Mestre sem analisarmos os nossos propósitos. Esquecemos que, um dia, Jesus perguntou a certo doutor da lei: “o que está escrito?” “E como lês?”. Recitar as passagens bíblicas é atitude corriqueira em milhares de casas religiosas espalhadas pelo mundo. Agora, retirar VIDA das Escrituras divinas – trazidas ao nosso orbe – pela linguagem humana, poucos deram conta de fazer. Seria muito simples que um amontoado de gente se reunisse em determinado lugar, e ali, a paz do Cristo estivesse presente. Todavia, não é esse o cenário averiguado na realidade. Reunir-se em nome de Jesus é tarefa para corações que fazem do templo (religião) e da oficina (mundo) uma só casa; ou seja, onde quer que estejam, estudam e trabalham, com esforço, para que, na sua conduta, os semelhantes possam ler uma página do Evangelho. Em seu amor magnânimo, Jesus gostaria que, em todas as reuniões da fé, as portas fossem abertas para ele. Não as portas materiais com trinco e fechadura, e sim, as das almas sinceras que tratam pobres e ricos da mesma forma, que não se aproveitam da boa-fé do próximo, que não se põem acima do bem e do mal e que renunciam aos caprichos humanos para que a voz divina possa tocar os Seus filhos amados.
   Onde encontrar, então, a presença de Jesus? Na qualidade do ambiente, pois onde o Celeste Amigo se encontra, há alegria, esperança frente aos problemas, cuidado com o sentimento do próximo, palavras sadias, mentes renovadas para o bem, perdão das ofensas, poder de renúncia a serviço do bem-comum, sintonia com a espiritualidade superior, fé em Deus e na imortalidade da alma. Onde Jesus se encontra uma simples ameaça à felicidade e ao livre-arbítrio do outro é vista como aberração, uma vez que denota o afastamento da Lei Divina alicerçada no amor. O Cristo disse ser o Caminho, a Verdade e a Vida. O caminho exige alguém para caminhar. O Mestre estará sempre ao nosso lado, mas o trabalho na imensa jornada evolutiva depende do nosso próprio esforço. A Vida é um campo enorme e nele ninguém colhe o perfume do sândalo, plantando ervas daninhas. E a Verdade, conforme salienta Emmanuel, só chega “a ouvidos dignos”, porque nas palavras de Jesus – “Deus não joga pérolas aos porcos”.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O perdão

Então, aproximando-se Pedro, disse-lhe: Senhor, quantas vezes meu irmão pecará contra mim e o perdoarei? Até sete vezes? Jesus lhe diz: Não te digo que até sete, mas até setenta vezes sete. (Mateus 18:21-20).
Utilizando-se de uma expressão idiomática do hebraico – "setenta vezes sete" – o Cristo estende ao infinito a necessidade do perdão. Para o julgo comum, o ato de perdoar é sinal de fraqueza, mas para alma que vibra nas estações da caridade, esquecer a agressão recebida é a oportunidade de vivenciar os postulados do Mestre e se libertar das algemas dos sentimentos inferiores. Se a justiça humana age, não raro, com intuito de aniquilar o infrator, a Justiça Divina encontra-se no mesmo patamar da misericórdia, porque a Lei de Amor é o ponto máximo de toda Legislação Celeste, e a criação universal encontra-se mergulhada nela. Sob o alicerce do perdão, o agredido haure forças para se sublimar, enquanto o agressor, diante de tamanho exemplo de fraternidade, vê-se convidado à
tarefa da redenção.
Como bem afirmou Desmond Tutu, o Prêmio Nobel da Paz e primeiro Ministro de Nelson Mandela: " Uma sociedade que se vinga cria uma nação de mutilados".

Um coração que ama

“Assim que comeram, Jesus diz a Simão Pedro: Simão, [filho de] João, tu me amas?” (João 21:15).

   A pergunta é emblemática. O Mestre poderia indagar ao discípulo quanto às suas mais eminentes virtudes intelectuais. Entretanto, assim não procedeu. Porque se fosse esta a intenção – reunir cérebros brilhantes segundo os preceitos do mundo – o Cristo teria formado o círculo íntimo dos seus apóstolos com os doutores do Sinédrio ou os catedráticos das universidades de Tarso e Alexandria. Em verdade, sabia Jesus que o Reino de Deus é a obra divina no coração dos homens. À época, Jerusalém estava impregnada pelo fermento farisaico. O povo perdia-se nas cerimônias exteriores dos templos luxuosos em intermináveis rituais de adoração. Israel afastava-se, cada vez mais, da pureza espiritual dos ensinamentos trazidos ao planeta pela sensibilidade dos profetas. Os sacerdotes inventavam lugares santos, ignorando que toda Terra é altar sagrado de Deus. Enquanto, o dogmatismo, o falso raciocínio da superioridade de raça e as interpretações fundamentalistas dos Escritos Divinos não conseguiam extrair o espírito da letra e nem separar o joio do trigo. Prova desse cenário é a indagação do Cristo a Nicodemos, quando lhe falara da necessidade de “nascer de novo” para ver o Reino de Deus: “Tu és Mestre de Israel e não sabes estas coisas?” (João 3:10).
Além dos desvios morais do povo escolhido para erguer a fé universal no Deus único e na sua Lei de Amor (vide os dois mandamentos inaugurais do Decálogo), o orbe terrestre era dominado pelos anseios imperialistas de Roma, que naufragava, retumbante, na missão que lhe fora dada de encurtar as fronteiras nacionais a fim de semear o espírito de fraternidade entre as nações. Na aurora dos dias primevos da Era Cristã, outra pátria também se encastelava nas obras arquitetônicas erguidas graças à inteligência maravilhosa dos seus sábios. Da suntuosidade do Areópago ao palco de espetáculos do anfiteatro, passando pelo monumento de beleza do Pathernon, a Grécia respirava os ares das filosofias negativistas e contentava-se com os mitos de seus deuses antropomórficos e humanoides.
Desta forma, religiosos, cientistas e filósofos – apegados às conquistas transitórias – alimentavam o sonho de um eldorado materialista sem compaixão, amor e caridade. Mal sabiam eles que as construções, puramente humanas, não resistem ao imperativo do tempo. A seu turno, cada civilização contribui, de algum modo, para o progresso da Humanidade. No entanto, nada é capaz de livrá-las das Leis da Natureza do mundo corpóreo. A matéria se transforma. Os séculos varrem castelos, catedrais, arenas e impérios, levando-os ao pó da terra. Por conhecer as verdades presentes nas mais distantes estrelas, Jesus reuniu homens simples, afastados das pomposas atividades do pensamento, porém mansos de coração, e deu a essas almas devotadas, cheias de vigorosos ideais de renúncia, o encargo de levar o Evangelho aos aflitos esquecidos pelos governos sociais. Assim, não mais o “Senhor dos Exércitos”, sedento de guerras fratricidas, e sim o Pai que ama os Seus filhos e é capaz de buscá-los, eivado de misericórdia, como narra o Rabi da Galileia, em linguagem simbólica, na Parábola do Filho Pródigo. Com Jesus, o temor a Deus, símbolo da fé rústica, é substituído pela manjedoura do amor. A Boa Nova, necessária frente aos velhos conceitos religiosos, vinha trazer notícias auspiciosas do Mundo Maior.
   Então...
    ... Pergunta o Emissário Celeste:
“Simão, [filho de] João, tu me amas?” Ele lhe diz: Sim Senhor, tu sabes que te amo. Jesus diz a ele: apascenta as minhas ovelhas. (João 21:15).
O Cristo ensinou a todos nós o valor de se combater o erro, mas amar, sem limites, aqueles que erram; deixou claro que não há sentido em mergulhar no amor de Deus, se as criaturas não canalizá-lo para o seu semelhante; provou que o verdadeiro pastor tem cheiro de ovelha e recusa-se a ficar, isolado, em cima de um púlpito, assoviando lições não vividas e mostrou que quem não ama só enxerga defeitos, porque se limita ao presente; enquanto, a alma que ama vê qualidades e enxerga potenciais, haja vista que acredita na capacidade imanente do ser humano de evoluir. Dentre infindáveis lições, o Mestre também mudou a relação do religioso com as liturgias dos templos, ao dizer: “entra no teu aposento e, fechada a porta, orarás a teu Pai que está em secreto” (Mateus 6:6).

ESCRAVO?

... Ao ver um grupo de jovens entregue às ruas e dominado pelo vício do crack, o pai comentou com o filho de 12 anos:

– Veja só aqueles rapazes, tornaram-se escravos das drogas...

O menosprezo materializou-se nas breves palavras, carregadas por uma artificial superioridade.

O menino, de sua baixa estatura, ergueu a cabeça para alcançar os olhos paternos e, utilizando-se de um raciocínio incomum, assim falou:

– É verdade, papai, o senhor tem razão. Mas, além desse, há outros gêneros de escravidão.
E enumerou-as: 

– Há os escravos da maledicência que não conseguem olhar a vida dos outros sem se utilizar do desdém.
– Há as personalidades enclausuradas pela violência, incapazes de dar uma resposta sem ignorância.
– Há os corações amordaçados pela mágoa, fraquejando ante o exercício do perdão.
– Há as mentalidades egoístas que desejam tudo para si e encontram-se no calabouço do ego.
– E há também os filhos do orgulho que não admitem VIDA fora de suas concepções.

O homem, altamente personalista, enxergou no filho um espelho de sua alma e nada averiguou que pudesse envaidecê-lo. Em segundos, pesou-lhe na consciência os valores ministrados na educação doméstica. Por fim, abraçou a criança, colocando-a junto ao peito como que agradecido pelo facho de luz aceso na sua consciência. Uma voz silenciosa o convidava para tarefa da reforma íntima.

A lucidez de uma mãe

Cabisbaixa, a jovem, exibindo a beleza dos seus 18 anos, desabafou junto ao coração de sua mãe: – A partir de hoje, não ajudo mais ninguém. As pessoas só me procuram por interesse, quando estão precisando... Cansei de fazer o papel de boba e, sempre, "levar pela cara".

Compreendendo a tensão do momento delicado, a alma materna trouxe ao peito a filha amada e afagou-lhe os cabelos num transporte de ternura, doando-lhe cuidados, típicos do amor.
Cessado o pranto de revolta, a voz doce emanou por toda casa:

– Minha filha, o simples fato de cultivarmos afeição por alguém já representa um tesouro divino do sentimento. Se está tão revoltada, é porque fez o bem esperando algo em troca, nem que fosse uma palavra de gratidão. Ajuda e passa. No minuto seguinte, pode haver outra pessoa necessitada de sua compaixão. Caso estacione, cheia de lamúrias e com ego ferido, chegará à minha idade sem esperança na vida. Quem se dá ao luxo de decepcionar-se, irremediavelmente, passa por esta Terra amando pouco e acumulando mágoas. Viver não é está sob posse de um corpo físico. Vida são experiências dignas de Deus.

Comentário: nas famílias, aprendemos a construir edifícios da intelectualidade para competir com o mundo e exibir láureas acadêmicas, no entanto, raramente, somos orientados a educar o sentimento. E desse enorme descuido, nascem as doenças psicossomáticas como a depressão e as diversas síndromes, entre elas, a do Pânico. Ninguém mergulha no calabouço das emoções porque não domina a ciência dos cálculos ou a arte literária. Adoecemos, emocionalmente, pelo abandono do maior patrimônio do homem: o sentimento.

E ainda permanecemos na luta inglória para revolucionar o mundo sem transformarmos a nós mesmos...

...Se as superestruturas de poder de um país adoecem, é sinal de que há algo de errado com as células que as compõem, isto é, os seus cidadãos. Nenhum povo mergulha num regime de corrupção por culpa exclusiva de uma única pessoa. Não é justo crucificar determinada personalidade, em particular, numa pátria na qual as instâncias do Legislativo e do Judiciário estagiam, igualmente, nas mesmas mazelas éticas.
   Clamamos todos por novos políticos, sem o vício do dinheiro e de ideias megalomaníacas. Mas, de onde eles virão? Das famílias? Das universidades? Das casas religiosas? Será que essas instituições encontram-se saudáveis? Será que a educação que recebemos nelas está calcada em bases morais? Por ventura, nesses redutos, é ensinado que a nossa felicidade não pode ter como alicerce a miséria dos outros? As academias do mais alto pensamento científico e filosófico instigam os seus adeptos a conhecerem a si mesmos? E no lar, aprendemos a lidar com as emoções ou somos cooptados a reagir como feras acuadas a fim de sobrepujar o semelhante?
  Pensamos muito em coerção, combate a impunidade, assinatura de protocolos, normas rígidas e renegamos a fonte natural dos problemas: as relações pessoais – das quais ninguém pode escapar. A causa dessa deterioração não é misteriosa ou o imprevisto de um Big Bang. As ideologias monolíticas estão em processo de falência, pois fracassaram ao tentar desmembrar o homem, arrancando-lhe o patrimônio do sentimento para jogá-lo no poço do materialismo político e, pasmem, religioso, como se a competição voraz fosse superior a um sistema de solidariedade. Nessa perspectiva egoísta, renova-se tudo o que é exterior, mas, intimamente, os homens permanecem os mesmos... Então, nada mudará.
   Que tipo de violência pode resolver tamanha crise moral numa época de armas químicas e teleguiadas? Seria prudente que o povo abandonasse os salvadores da pátria que vendem facilidades, o fundamentalismo de qualquer ordem e procurasse os andarilhos notáveis e anônimos que entenderam a necessidade de se doar ao próximo. Não há mais espaço para discursos, revestidos com o véu humanista, todavia inspirados no ódio.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Contexto da Parábola do Bom Samaritano (Lc 10:25-37): o pensamento universal do Cristo

   Jesus comunicou aos seus discípulos que iria à Jerusalém. Algo absolutamente normal: rezava a tradição que todo o homem, caso tivesse condições, deveria seguir, na data oportuna, viagem rumo à capital para celebrar a festa da Páscoa. No entanto, o Cristo afirmou que, antes de chegar ao destino citado, desejava passar pela Samaria. Ora, era esse o caminho mais longo e perigoso, neste último caso, porque os samaritanos significavam, à época, o que, hoje, representam os palestinos para o povo judeu; ou seja, inimigos de morte.
   Há registros históricos de samaritanos assassinados no coração religioso e político da nação e de judeus executados na Samaria. A guerra ferrenha se dava, embora ambos os povos fizessem parte, originalmente, de um mesmo tronco, pois até o ano 700 a.C, as 12 tribos de Israel formavam um só agrupamento. Depois, do grande cisma, ficaram 2 tribos (Benjamim e Judá) ao sul e outras 10, ao norte. Na Samaria, construiu-se um novo templo para que os habitantes do local não precisassem peregrinar até Jerusalém. Havia, inclusive, disputa para saber em qual monte Deus deveria ser adorado: na avaliação dos judeus, nas paragens do Sião e, segundo os samaritanos, no cenáculo do Gerizim.
   Os apóstolos aceitaram a proposta do Cristo. Comandados por João Evangelista, ao chegarem à Samaria, buscaram hospedagem para o Mestre. Ninguém quis atendê-los devido às suas origens judaicas. Os discípulos da Boa Nova se revoltaram: os samaritanos haviam quebrado importante código de ética do oriente ao negarem acomodação a um peregrino. Existia, também, a lenda de que desceria fogo do céu para queimar a pessoa (e toda a sua família) que recusasse abrigo a quem estivesse em romaria.
   Neste cenário, Tiago e João se reportaram a Jesus, contaram os fatos e lhe inquiriram: “Senhor, queres que digamos para descer fogo do céu a fim de destruí-los?” (Lc 9:54). O Cristo, por sua vez, não deu vida a manifestação de ódio arraigada no inconsciente coletivo em virtude da tradição.
    A viagem, assim, seguiu. Jesus e os apóstolos chegaram, enfim, à Jerusalém, certamente, exaustos pelas condições climáticas e devido à extensa caminhada no deserto. Ao pisar na cidade, o Bom Pastor, logo, foi interrogado por um doutor do Sinédrio (cúpula judaica, onde operavam os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além do banco central): "Mestre, depois de fazer o que, herdarei a vida eterna?”.
    Jesus lhe respondeu com duas perguntas: "Que está escrito na Lei? Como lês?" (Lc 10:26). O doutor viu-se em situação inversa. Ele, que desejava fazer indagações, achou-se na posição de encontrar respostas. Para tal, recorreu aos textos do Deuteronômio e do Levítico, dois livros do Pentateuco Mosaico (Torá), e citou os insuperáveis mandamentos, baseados na Lei de Amor: “ Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua força, e com toda a tua mente; e o teu próximo como a ti mesmo” (Lc 10:27).
    O mestre da Lei deu essa resposta sintética, porque conhecia a tradição milenar de interpretação das Escrituras. Jesus, sem emendas, confirmou a veracidade do que ouvira: "Respondeste de forma justa. Faze isto e viverás" (Lc 10:28). Estava dado o parecer do Cristo a respeito da questão: "... depois de fazer o que, herdarei a vida eterna?". Sobre o que versava, então, a conversa entre o Rabi da Galileia e o membro do Sinédrio? "Interpretação de texto", 1000 anos de estudos dos livros de Moisés e de cultura religiosa.
    Os textos mosaicos disseram aos patriarcas – Abraão, Isaac e Jacó – que a eles caberia o direito de herdar a Terra Prometida. Séculos se passaram, após a promessa divina, e alguém perguntou: Abraão morreu; como ele herdará a terra? A fim de elucidar a dúvida, Hillel, o avó de Gamaliel (mestre de Saulo de Tarso), disse que esta terra não era um lugar fixo, mas um mundo novo (regenerado), onde o amor iria prevalecer; desta forma, não mais um povo privilegiado, e sim, a Humanidade inteira.
   O erudito (o inquiridor da parábola) resumira os 614 mandamentos da Lei em 2 e foi aprovado por Jesus. Todavia, quando não queremos fazer algo que sabemos ser o certo, racionalizamos uma desculpa e ignoramos o brilho do sentimento. Para o doutor, o primeiro mandamento era perfeitamente compreensível. Os judeus estudavam-no na escola desde tenra idade.
  “Amar a Deus de todo o coração”, o que representava essa frase no primeiro artigo do Decálogo? Para o povo hebreu, o coração não era, apenas, a sede do sentimento, era morada também da inteligência. Na avaliação deles, o coração do homem é bom, mas encontra-se sempre em conflito, por isso, tem vontade de fazer o mal. Amar a Deus significa, pois, dar unidade ao coração; ou seja, utilizar o sentimento e a sabedoria no exercício do bem. Sem unidade, o coração está dividido e, desta forma, é impossível amar a Deus.
   O segundo nível: “amar Deus de toda a alma”. Alma e corpo integravam um todo; quer dizer, não havia separação entre ambos. A interpretação dizia: não venha só com sentimentos e palavras, fazem-se necessárias atitudes concretas, não à toa, eles peregrinavam e mantinham o ritual das oferendas.
   Terceiro nível: “amar a Deus com toda a tua força”, isto é: colocar todos os recursos disponíveis na atividade do bem, numa definição, a serviço de Deus. No ato de amar o Todo-Poderoso, o judeu não criava discussões. A tarefa tratava de um ponto pacífico. O problema estava em amar o próximo. Muitos defendiam a tese de que o próximo - no texto em hebraico, a palavra é irmão – era, tão-somente, amar o próprio judeu. Logo, se o sujeito fosse romano, não precisava amá-lo; se viesse da Grécia, também não e, caso fosse samaritano, menos ainda. O meu próximo deve ser alguém do meu povo. Essa era a interpretação majoritária.
   (Se nem mesmo o hebreu, o povo que recebeu a Torá, tinha domínio completo das interpretações das Escrituras devido às suas fragilidades morais, o que dizer de nós outros que, infantilmente, cremos que o Velho e o Novo Testamentos foram escritos em Língua Portuguesa para brasileiros no século XXI).
    Continuando...
   Sob o prisma daquele raciocínio, se qualquer judeu visse um romano caído na estrada, ele podia seguir adiante, pois ali, sofria alguém que não era de seu povo. Hillel, todavia, alertava que "irmão" tinha um sentido mais amplo e não se resumia, apenas, aos homens da mesma nação. Citava, para melhor discernimento, referências do próprio Antigo Testamento como a passagem em que Abraão recebeu peregrinos vindos de outro povo.
    Quando Jesus recomenda: "Faze isto e viverás"; ou seja, será considerado um justo e terá a vida eterna (um mundo de paz e amor), o catedrático diz ter uma dúvida a fim, de outra vez, testar o Nazareno: "Quem é meu próximo?" (Lc 10:29). Ele ansiava que o Cristo desse uma resposta pronta para, assim, criar contenda como quem diz: "não, este não é o meu próximo. Sou judeu". O Messias, sabiamente, conta a Parábola do Bom Samaritano com intuito de submeter o exame do tema à consciência do doutor da Lei. Quando o Cristo faz a narrativa de profundo significado espiritual, João Evangelista e Tiago, que também estavam ao seu lado, devem ter captado a lição, porque, anteriormente, eles desejavam que descesse fogo do céu para matar os samaritanos.
   Lembrete: Jesus vinha de uma longa caminhada e não encontrara repouso, pois os samaritanos haviam lhe negado hospedagem e, mesmo assim, ele conta a Parábola do Bom Samaritano para ilustrar as ações do homem de bem.
    Prosseguindo...
    Na Páscoa, Jerusalém ficava com aproximadamente 1 milhão de pessoas - 10 vezes mais a população local. Na parábola, o único ser não identificado foi o homem que descia de Jerusalém para Jericó, aquele que, no desenrolar dos fatos, precisaria de ajuda por “cair nas mãos de assaltantes, os quais, depois de havê-lo despojado e espancado, retiraram-se, deixando-o semimorto”. (Lc 10:30)
    Por que Jesus ocultara a identidade dele? Se olhassem para o viandante, dava para identificá-lo pelo sotaque? Não, ele estava inconsciente. E pela cor da pele? O sol desértico deixava todo mundo bronzeado. E pelas roupas? Ele estava nu. E quanto à fisionomia? Ensanguentada. Pois bem, aquele que desejasse auxiliá-lo deveria exercer a mais ampla caridade sem olhar a quem.
    Segue a narrativa: “Por coincidência, certo sacerdote descia por aquele caminho e, ao vê-lo, passou pelo lado oposto” (Lc 10:31). O doutor da Lei respeitava muito o sacerdócio organizado em virtude das atividades no templo. O que se espera, em verdade, de um sacerdote? Que ele cumpra a Lei Divina (os dois maiores mandamentos alicerçados no amor). A tradição do povo hebreu dizia, porém, que sob a penalização de ficar ritualmente impuro, o sacerdote não deveria tocar um cadáver e, caso houvesse o contato, a purificação, no porvir, seria muito trabalhosa. Mart Luther King, certa vez, afirmou que o ministro da fé estava preocupado consigo, sobre o quê diriam dele, e não, com a dor do outro. Fica, aqui, um questionamento: e se o homem caído pertencesse a sua parentela, qual seria o procedimento: pesariam mais os deveres clericais ou o fator humano? O levita, ajudante do sacerdote, “que vinha por aquele lugar, ao vê-lo, passou pelo lado oposto” (Lc 10:32). Eis o retrato da pessoa que imita alguém sem questionamento.
    No entanto...
    "Certo samaritano, em viagem, veio até ele e, ao vê-lo, compadeceu-se. E, aproximando-se, atou os ferimentos dele, derramando óleo e vinho. Após colocá-lo sobre seu animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao hospedeiro, e disse: Cuida dele, e o que gastares a mais, quando eu retornar, te pagarei”. (Lc 10: 33-35)
    O texto não diz de onde o samaritano vinha. Se estava na festa da Páscoa em Jerusalém ou se retornava de outro lugar. Não dá para afirmar se o viandante era religioso segundo as convicções da época. Entretanto, o certo é que ele "compadeceu-se". Verbo na voz reflexiva. Praticou e sofreu a ação. Tocou-se e deixou-se tocar de piedade e compaixão, assim, "amou a Deus de todo o coração". Teve o sentimento necessário e também a sabedoria para ajudar. Desceu do animal, usou o vinho como antibiótico natural, fez do azeite um bálsamo para aquelas chagas abertas, colocou o homem sobre a montaria e o conduziu pela estrada. Em seguida, levou-o até a hospedaria, pagou pelo aposento e disse ao comerciante: “Cuida dele, e o que gastares a mais, quando eu retornar, te pagarei” (Lc 10:35). Sinceramente, "amou a Deus de toda alma", com atos práticos.
    O doutor da Lei teve que reconhecer valores espirituais numa pessoa da qual não gostava. Com a força viva do exemplo, Jesus o perguntou: “Qual destes três te parece ter-se tornado o próximo do que caiu nas mãos de assaltantes?” (Lc 10:36). O religioso do Sinédrio que já detinha a resposta, em si, colocou-a para fora... Deste modo, perguntemos aos religiosos da atualidade: Quem é o seu próximo? Talvez, eles ainda respondam com o amor seletivo: “ele, ela, aquele e aquela” (todos dentro do mesmo sistema de crença que o meu). Na contraparte, “este não, esse também não, aquele menos ainda” (, pois não pertencem a minha casta).
    A pergunta de Jesus – “qual destes três te parece ter-se tornado o próximo do que caiu nas mãos dos assaltantes?” –  é emblemática. O Cristo faz a indagação sob a perspectiva do homem caído; ou seja, e se o necessitado fosse você (no caso, o doutor da Lei)? O judeu entendeu a mensagem por ser muito inteligente e certificou-se da verdade: “O que praticou a misericórdia com ele. Disse-lhe Jesus: Vai e faze tu do mesmo modo” (Lc 10:37).